Basicamente, o que diz o mito é que o papa Leão XII, em 1829, pouco antes de morrer (ele faleceu em fevereiro daquele ano), teria se expressado contra a vacinação com essas palavras: “Quem quer que recorra à vacina deixa de ser filho de Deus (…) a varíola é um juízo de Deus (…) A vacina é um desafio lançado ao céu”. Como consequência, a varíola teria varrido os Estados Pontifícios nos anos seguintes. A vacina contra a varíola havia sido desenvolvida em 1796, por Edward Jenner, em substituição ao método da variolação, que consistia em inocular quantidades mínimas do vírus nas pessoas com o objetivo de desenvolver uma resposta imunizante.

As fontes

A primeira coisa que chama a atenção neste caso é que não existe absolutamente nenhuma fonte primária – bula, discurso, decreto, encíclica, o que for – contendo a tal proibição, o que, no caso do Vaticano, em que tudo é registrado por escrito, praticamente equivale a um atestado de inexistência. Além disso, não há nem mesmo registros extraoficiais, de historiadores ou cronistas contemporâneos a Leão XII, o que provavelmente teria ocorrido caso o papa realmente tivesse tomado tal decisão.

O blogueiro Humphrey Clark, cujo texto sobre o tema, publicado em 2009, foi um dos primeiros que eu li quando esbarrei na lenda, afirma que a primeira menção conhecida à tal proibição é de 1879 e está em uma biografia do rei Vítor Emanuel II escrita pela britânica Georgina Sarah Godkin, que pertencia a uma corrente altamente ideologizada de historiadores chamada Whig history. Segundo ela, “em sua insensata fúria contra o progresso, ele [Leão XII] proibiu a vacinação; consequentemente, a varíola devastou as províncias romanas durante seu reinado”. Clark afirma que Leão XII era um papa bastante austero e um tanto autoritário e moralizador, o que não caía muito bem para a intelligentsia europeia da época e fazia dele um alvo fácil de atacar com alegações que, se não eram verdadeiras, eram ao menos bem verossímeis.

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Já em 1986 a suposta proibição tinha chamado a atenção do jesuíta Donald Keefe, que descreveu em um artigo sua busca pela fonte original da história, que ouvira em uma palestra. Ele entrou em contato com o palestrante, que lhe enviou as referências, e a partir daí Keefe reconstruiu a cadeia de citações até chegar a um livro de um certo Pierre Simon, datado de 1966. Ali ele se viu em um beco sem saída – provavelmente, desconhecia o livro de Georgina Godkin.

Keefe tem uma hipótese muito plausível para o fato de essa lenda ter sido tão popular nos anos 60 do século ado. Em 1968, o papa Paulo VI encerrou um longo debate interno na Igreja a respeito dos meios artificiais de contracepção, publicando a corajosa (e profética) encíclica Humane Vitae. E muitos dos textos encontrados por Keefe em sua pesquisa eram não sobre a vacinação, mas sobre contracepção, e escritos por autores contrários à doutrina expressa na Humanae Vitae. Para o jesuíta, a estratégia era atirar em Leão XII para acertar Paulo VI: segundo esses autores, se a Igreja já tinha se equivocado quando à vacinação no século 19, por que não estaria errada agora sobre a contracepção?

Se a história da proibição é mentira, qual é a verdade?

Continuamos com as fontes citadas por Humphrey Clark. Em 2008, a Revue d’Histoire Ecclésiastique publicou o artigo “Pratique de la vaccination antivariolique dans les Provinces de l’État pontifical au 19e s. Remarques sur le supposé interdit vaccinal de Léon XII”, de Yves-Marie Bercé e Jean-Claude Otteni. Antigamente havia um PDF disponível com o texto completo do artigo, mas o link não funciona mais e agora o conteúdo parece ter o . Ficamos, então, com o resumo oferecido por Clark. Ainda em meados do século 18, o papa Bento XIV já tinha levado o método da variolação aos Estados Pontifícios; quando surgiu a vacina contra a varíola, o Estado papal esteve entre os países que a adotaram, graças ao papa Pio VII, antecessor imediato de Leão XII. Havia até mesmo um centro de vacinação no Hospital do Espírito Santo, perto do Vaticano, e em 1821 foi estabelecido um Conselho de Vacinação.

Mas tudo isso é anterior a Leão XII. E depois? Depois continuou tudo como estava. Em 1824, já no pontificado de Leão XII, o médico Luigi Sacco afirmava que praticamente todos os recém-nascidos em Roma eram vacinados a ponto de já não se temer a varíola. Não há nenhum registro de interrupção da prática de vacinação, nem de surtos de varíola ou número incomum de mortes durante as décadas de 1820 ou 1830. Pelo contrário: um estudo de 1838 (nove anos após a morte de Leão XII) afirmou que os Estados pontifícios não deviam nada ao restante da Europa ocidental em termos médicos.

A lenda foi especialmente popular nos anos 60 porque a estratégia era atirar em Leão XII para acertar Paulo VI, que havia publicado uma encíclica sobre a contracepção

Em resumo: a história da proibição é falsa, não existe nenhuma fonte primária nem contemporânea que a confirme, a primeira menção conhecida é de 50 anos depois e escrita por alguém bastante enviesado, e na verdade as políticas sanitárias dos Estados Pontifícios eram bastante elogiadas antes, durante e depois da agem de Leão XII pelo pontificado.

Bônus: a versão de Jô Soares

Talvez alguém lembre de uma versão um pouquinho diferente da lenda. Em 2012, quando foi ao Programa do Jô lançar um novo livro, o padre Reginaldo Manzotti foi surpreendido com a informação de que o papa Pio X tinha proibido Louis Pasteur de aplicar vacinas. Está no minuto 5:38 do vídeo: “vacina era um anátema, era um perigo, era um pecado”, diz o apresentador. O padre Reginaldo acaba desviando do assunto, fala um pouco de “descontextualização”, e nem temos como culpá-lo de nada; você está lá para falar de outra coisa, é pego de surpresa com uma alegação da qual você não sabe bulhufas, não vai tentar rebater; talvez, no máximo, perguntar a fonte.

Mas, se alguém vier lhe questionar com essa versão da lenda, guarde na ponta da língua a pergunta: como isso teria sido possível, se Louis Pasteur morreu em 1895 e Pio X foi eleito papa em 1903? Seu interlocutor vai ter de pesquisar. Aproveite para avisá-lo: se por acaso ele descobrir que essa história da vacina envolvia outro papa, um certo Leão XII, pode descartar, porque isso aí é fake history.

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