Universidade ainda não entendeu que pesquisa em ciência e fé não é proselitismo
Talvez o engajamento com as universidades não confessionais seja o aspecto específico em que estamos mais atrasados em comparação com o mundo anglo-saxão. Cambridge e Oxford são públicas, e isso não impede que ambas tenham institutos de pesquisa em ciência e religião – respectivamente, o Faraday e o Ian Ramsey – que hoje são referências mundiais. Saindo do mundo universitário, a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) tem um departamento específico dedicado ao diálogo com as comunidades religiosas. E por aqui? Sei que o México tem uma história de laicismo exacerbado, que pude perceber quando o congresso de que participei na capital mexicana em 2011 teve de ser mudado de lugar às pressas por causa de uma revolta de professores e alunos na Unam, que é pública. Mas aqui no Brasil não é muito diferente; apesar de a Constituição prever o sistema de laicidade colaborativa no seu artigo 19, na prática temos um laicismo velado, ao menos no ambiente universitário-científico; só faltam mesmo as ameaças de agressão física. Até onde eu sei, a universidade pública brasileira que tem as portas mais abertas para esse tema é a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde funciona o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde, mas ela é exceção; a regra são episódios como os que já registrei aqui no Tubo: o cancelamento de um evento criacionista na Unicamp, em 2013, e de um Curso Faraday na Poli-USP, em 2014; e, mais recentemente, a recusa do Museu Oscar Niemeyer em sediar a conferência nacional da ABC2. Além disso, o “Grupo de Trabalho Estado Laico” da SBPC é mais laicista que laico.
Essa atitude é de uma miopia sem tamanho. É preciso dar um salto lógico gigantesco para imaginar que se está privilegiando alguma fé específica ou fazendo proselitismo religioso quando na verdade se está discutindo, com rigor acadêmico, a possibilidade de construção de pontes entre o saber científico e as diferentes religiões – aliás, arrisco dizer que o debate sobre ciência e fé se dá com muito mais rigor acadêmico que boa parte da bobajada que se produz atualmente com dinheiro do contribuinte brasileiro. A hostilidade do mundo acadêmico a qualquer coisa que cheire a religião já foi apontada por autores como Chris Mooney e Sheril Kirshenbaum como um dos fatores que elevaram a indiferença ou mesmo a desconfiança da população em relação à ciência.
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Isso nos leva ao segundo desafio, porque não há milagre que faça um não crente se engajar na pesquisa sobre ciência e fé se esse não crente tiver desprezo ou até ódio pela religião. A própria natureza desse campo faz dele algo muito mais atrativo para quem tem fé, embora haja “subcampos” que são exceções – por exemplo, na pesquisa em história da relação entre ciência e religião, tivemos o grande Ronald Numbers, que era agnóstico, e foi citado em algum momento do congresso pelo Ignacio Silva, da Austral. De resto, parece-me que só vão entrar neste debate aqueles que, mesmo não crendo, têm respeito pela religião e pelos religiosos, como é o caso de outro agnóstico, o astrofísico Marcelo Gleiser.
Por fim, como trazer mais jovens para essa conversa? Eu vejo sinais positivos. Semanas atrás, o grupo de jovens da paróquia que frequento me convidou para uma palestra. A experiência foi extraordinária. Gastei uns poucos minutos apenas apresentando os quatro modelos de Ian Barbour, mas o resto do tempo dediquei àquilo que eles consideravam interessante; havia pedido que me mandassem perguntas com antecedência, e ali na hora ainda surgiram outras. A conversa foi tão boa que estouramos bastante o tempo que esses encontros costumam ter. Comprovei na prática o que Guy Consolmagno recomendou anos atrás. ito que é uma evidência anedótica que pode não representar uma tendência geral, mas, quando temos pesquisas mostrando que os mais jovens estão começando a ter uma visão mais positiva da relação entre ciência e fé em comparação com a média da população, há esperança.
Mas despertar o interesse dos jovens para o diálogo entre ciência e religião é diferente de atrair um jovem pesquisador para que faça carreira acadêmica nesse campo. E, como o mundo acadêmico é algo bem distante da minha realidade, perguntei a quem está inserido neste ambiente o que precisa ser feito. Antes de tudo, diz Juan José Blázquez, do Cecir, é preciso haver uma divulgação adequada do tema. Mas o maior desafio, segundo os especialistas com quem conversei, é que esta carreira exige um grau de interdisciplinaridade que pouca gente está disposta a encarar nesta era de hiperespecialização. “Os teólogos não gostam de tratar de áreas de desconhecem. Eu já tive problemas em aulas de Teologia, em que os alunos me perguntavam: ‘por que temos de estudar Biologia se viemos aqui para estudar Teologia?’. Da mesma forma, os cientistas, em sua grande maioria, não querem sair de sua especialidade, não querem saber nada de filosofia, nem de história da ciência”, afirma o padre Lucio Florio, do Decyr. “É tarefa do professor ajudar os jovens a superar preconceitos, informá-los bem sobre ambas as maneiras de abordar a realidade. Deixar-se interpelar mutuamente é o desafio, ainda que não seja algo fácil”, diz Verónica Figueroa, do Ipis-Ucasal.
As faculdades deveriam ter disciplinas que fizessem a intersecção entre ciência e fé, tanto nos cursos de ciências (Biologia, Física etc.) quanto nos de Teologia ou Filosofia, sugere Verónica Figueroa
Como o prático no sentido de criar esse ambiente propício ao diálogo, Florio sugere que o tema já comece a ser tratado antes da faculdade. “O diálogo tem de começar no ensino fundamental e médio – como propõe Lorena Oviedo, que escreveu um livro sobre ciência e religião na escola –, e também na catequese ou na formação religiosa. Isso proporciona uma visão fundamental, que impede esses jovens de serem seduzidos pela tese do conflito no futuro”, afirma o sacerdote. Mas não podemos parar aí; o jovem pesquisador precisa ver neste campo não apenas uma forma de satisfazer uma curiosidade, mas de fazer carreira nele – e pagar seus boletos. Verónica Figueroa afirma que as faculdades deveriam ter disciplinas que fizessem essa intersecção entre ciência e fé, tanto nos cursos de ciências (Biologia, Física etc.) quanto nos de Teologia ou Filosofia. “Se não for possível, que houvesse ao menos uma cátedra aberta sobre esses temas, como faz a Universidade Católica de Córdoba, que tem a cadeira de Ciência, Religião e Educação, dirigida por José Funes, ex-diretor do Observatório Vaticano”, exemplifica.
Blázquez, do Cecir, destaca como essencial “o apoio institucional aos jovens pesquisadores, por meio de centros, institutos, universidades, igrejas, bem como o apoio financeiro internacional”. Felizmente, as universidades confessionais (o que nos traz de volta ao primeiro desafio) estão acordando para a importância do diálogo entre ciência e fé como um dos grandes temas do século 21, e há canais importantes de financiamento, com instituições dispostas a bancar bons projetos. “Por isso quisemos que este congresso tivesse o espaço de apresentação de iniciativas e centros de estudo: para que os jovens acadêmicos pudessem saber a quem procurar, caso eles sintam o desejo de seguir neste caminho”, acrescenta Figueroa, do Ipis.
O padre José Funes, doutor em Astronomia e ex-diretor do Observatório Vaticano (depois de George Coyne e antes de Guy Consolmagno), foi um dos principais nomes do XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião. Pudemos conversar um pouquinho em um dos intervalos do evento, e essa conversa você verá aqui no Tubo de Ensaio daqui a duas semanas.