Anos depois, participei de uma discussão sobre os males da colonização espanhola na América. A chegada dos europeus, diziam alguns, só havia trazido desgraça, morte e destruição. Eu lembrei aos debatedores que uma das culturas que havia sido conquistada pelos espanhóis foi a civilização Asteca, cuja prática religiosa envolvia sacrifícios humanos. Mulheres, crianças e homens eram levados para o alto de uma pirâmide, tinham seu peito aberto e o coração arrancado como oferenda. A resposta que recebi foi inacreditável.
“Essa era a cultura deles”, disse um dos debatedores, em tom furioso. “Ela tem que ser respeitada como qualquer outra cultura.” Fiquei muito tempo refletindo sobre aquilo. A matança de seres humanos poderia ser uma “prática cultural” respeitável? As perguntas que aquele episódio levantou foram muitas. Afinal, todas as culturas são iguais? Todas as práticas humanas são equivalentes? Os conceitos de certo e errado são relativos?
Será que todas as culturas têm o mesmo valor, e merecem o mesmo respeito e proteção, ou algumas culturas são superiores às outras pelos valores que defendem?
Muito tempo depois, em 2014, essas perguntas ressurgiriam. Eu fazia um mestrado em istração e um dos professores explicou que algumas tribos tinham o costume de enterrar vivos os recém-nascidos, como forma de “controle da natalidade”. O professor deu a entender que era uma “prática cultural” normal e que não nos cabia julgar ou condenar esse ato. Se o fazíamos, era apenas porque esse “costume” não estava de acordo com os padrões ocidentais. Fazer isso era praticar “etnocentrismo cultural”, ou seja, julgar uma cultura diferente usando o referencial de nossa própria cultura. E isso seria errado, o professor completou.
Mas todo padrão moral é relativo – porque está conectado à cultura em que vivemos – ou existem padrões morais absolutos? Será que todas as culturas têm o mesmo valor, e merecem o mesmo respeito e proteção, ou algumas culturas são superiores às outras pelos valores que defendem?
Depois do massacre de 7 de outubro realizado por terroristas do Hamas contra civis em Israel essas questões deixaram de ser abstratas. O mundo se lembrou que existem regimes teocráticos e grupos fundamentalistas que habitualmente oprimem, terrorizam, violentam, torturam e matam crianças, mulheres e minorias.
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Inacreditavelmente, ativistas ocidentais que se proclamam defensores de direitos humanos apoiam essas práticas sob o argumento de que se trata “da cultura deles”. A expressão concreta dessa “cultura” – primitiva brutal e preconceituosa – se transforma, aos olhos desses relativistas morais, em resistência à “opressão” ocidental.
Essa é, obviamente, uma defesa do indefensável. Uma “cultura” que glorifica morte e tirania não tem lugar no mundo civilizado. Como explicam Geisiane Freitas e Patrícia Silva, no excelente O Que Não Te Contaram Sobre o Movimento Antirracista, existem hierarquias culturais, determinadas pelos elementos de cada cultura.
Elas dizem: “Por exemplo: culturas que praticavam o infanticídio ou o canibalismo, obviamente, não estão no mesmo patamar que culturas que defendem a vida desde a concepção. Culturas que exaltam promiscuidades conjugais, imoralidades sociais e todo o tipo de relativismo são inferiores por aquilo que defendem, não pela composição racial ou étnica de seu povo”.