Pois é. Agora Jorge (se não tivesse morrido) e os poucos satiristas (reais ou não) que ainda restam têm de lidar com uma ameaça muito maior. Porque definitivamente os limites entre a sátira e a realidade foram quebrados e não há oração a São Swift que dê jeito. Não se a um só dia sem que um leitor atento se depare com uma transrealidade que simplesmente decidiu fluir e se identificar como sátira. Só de sacanagem. 4x444t

Basta abrir os jornais. No caso, a Gazeta do Povo – que eu não sou nem louco de recomendar a concorrência. Está lá o presidente Jair Bolsonaro baixando a cabeça para o STF e obedientemente apresentando exame de PCR para poder participar da posse de André Mendonça – exatamente como Jorge descreveu no estrondoso sucesso satírico “El Bravatero Tchá Tchá Tchá”. Artistas militantes reclamam de “censura” na OEA – igualzinho ao que se lê no best-seller “Caê & Seus Amigos Amestrados ou Adestrados”. Sem falar no trans desafinado que sai por aí a falar de política, elogiando terroristas rurais e, claro, enaltecendo Lula – numa reprodução quase fiel do enredo de “Elu, uma disforia muito loka”.

Héterodenominação (sic) patriarcal 5e5n5s

Jorge, que não é de hoje vem tendo dificuldades para cumprir os prazos acordados com a editora, desta vez pensou em escrever uma sátira protagonizada por uma filósofa, ou melhor, uma bacharela em filosofia que se diz perseguida política e vive em Paris, de onde dissemina sandices como o uma estrovenga ideológica que ela chama de tecnoturbomachofascismo. Só esse termo improvável já deve render uma ou outra risada, pensa Jorge, nosso satirista-que-vai-morrer.

Assim Jorge vai compondo esse ser tão tão tão risível, com ideias tão absurdas, que só pode existir mesmo na mente doentia de um ficcionista. Ele dá a ela uns olhos que aqui e ali se esbugalham, um tom de voz necessariamente arrogante e um ego jupiteriano. E a dias criando os termos acadêmicos mais estrupicientos e vazios possíveis, de modo que a filósofa fale um idioma só seu. Guardadas as devidas proporções (num esconderijo secreto), é algo assim quase roseano.

No último capítulo da sátira, Jorge resolve tecnoturbomachofascistar o exagero. Numa cena fundamental para a história, ele coloca a filósofa num café da Cidade Luz e diante do iPhone novinho em folha para compor o absurdo dos absurdos. Ou melhor, o ridículo dos ridículos: apenas uma frase capaz de, na falta de expressão melhor, encapsular o espírito do tempo. “Vai ser minha obra-prima”, pensa ele, porque é o que todos os escritores do tipo pensam ou esperam que suas obras sejam.

Depois de apenas três parágrafos de desenvolvimento de toda uma história, Jorge está contente com o que criou. Ele se sente um Michelângelo dando vida ao mármore. Só não se sente Deus moldando Adão com o barro da imaginação porque Jorge tem semancol.

Mas aí de repente (são sempre repentinas essas coisas) Jorge, prestes a enviar a sátira ao editor, se depara com Márcia Tiburi. Que aqui entre nós, na vida real (tanto quanto as redes sociais podem ser consideradas “vida real”), recentemente escreveu que se recusa a chamar a América Latina de América Latina. Para ela, o “correto” é usar o termo Abya Yala. Por quê? Licença, Jorge, que é a própria Márcia quem vai explicar: “[é] como preferimos nós, avessos a essa héterodenominações [sic] patriarcais europeias e capitalistas”.

É a proverbial & clichezenta gota d'água. Jorge, que já andava frustrado porque, nas palavras dele, “é impossível competir com ministro do STF falando em proteger a democracia ao mesmo tempo em que usurpa o poder do Executivo, com nadador ganhando competição feminina e com nerd tomado por cientista”, joga o computador contra a parede.

E cai para trás, segurando o braço esquerdo e reconhecendo nisso o sintoma inequívoco de um infarto que, sinto informar aos que até aqui se afeiçoaram a Jorge, será fatal. “Miocardite numa hora dessas?!” pensa ele. Seu último pensamento satírico.