Para isso é que servem os amigos. O Chalaça foi lá e se sentou ao lado de D. Pedro. Digo, no cupinzeiro ao lado, porque os dois juntinhos no mesmo cupinzeiro dariam o que falar naquele tempo em que homofobia ainda não era crime equiparável ao racismo. Que, por sinal, também não era crime. “Que que houve, meu bom?”, perguntou o Chalaça. Percebi um sotaque baiano ou estou ficando louco? 6c393x
D. Pedro falou. E falou e falou e falou. Reclamou da família, dos políticos, da Domitila e até do Laurentino Gomes. “O cara vai e me escreve um livro dizendo que estou com dor de barriga hoje. Vê se pode! Você por acaso já viu um vulto histórico com dor de barriga, ainda mais no dia em que vai tomar uma atitude drástica que virará feriado nacional?”, perguntou D. Pedro a um Chalaça totalmente perdido. Ainda mais porque estava de ressaca, o nobre devasso.
Levantou-se, então, D. Pedro, respirando fundo. “Vamos lá então, né? Hora de criar essa bagaça chamada Brasil”, disse o príncipe regente para o amigo. “O que é que eu tenho que falar mesmo?”, perguntou. Do bolso, o Chalaça tirou um papelzinho amarrotado, no qual se lia: “Amigos, as Cortes Portuguesas querem escravizar-nos e perseguir-nos. A partir de hoje as nossas relações estão quebradas. Para o meu sangue, minha honra, meu Deus, eu juro dar ao Brasil a liberdade. Brasileiros, que nossa palavra de ordem seja a partir de hoje ‘Independência ou morte!’”.
D. Pedro pegou o papel e ficou ali reando o texto. “Primeiro que eu não gosto de ênclise, você sabe. Só vou deixar ar porque é um documento histórico e tal. E mais: você não acha ‘Independência ou morte’ um pouco exagerado?”, perguntou. O Chalaça o tranquilizou dizendo que a opção “morte” era só força de expressão, que no fundo os portugueses estavam doidinhos para se livrar do Brasil. “Daqui a duzentos anos isso aqui vai estar uma confusão que você nem imagina”, disse o alcoviteiro da corte. Foi a vez de o quase-imperador não entender patavina. E de seguir com o roteiro.
D. Pedro subiu num pangaré cansado e avançou lentamente até as margens plácidas que muito em breve ouvirão o brado retumbante. Ali perto, diante de um cavalete, Pedro Américo registrava a cena para a posteridade, instruindo protagonistas e figurantes. “Pedroca, mais para a direita. Isso, isso. Aí! Perfeito!”, gritou o pintor. “Agora levanta a espada assim, ó...!” Um tanto quanto enfastiado, como era próprio para um menino de 24 anos, D. Pedro fazia o que o pintor mandava.
Assim que o quadro estava montado, D. Pedro começou a declamar o discurso que com muita dificuldade havia decorado. “Amigos, as Cortes Portuguesas...”, começou. Enquanto falava, o agora-já-dá-pra-falar-que-é imperador vislumbrou o sol que, em raios fúlgidos, brilhava no céu da Pátria naquele instante. Emotivo que era, quase chorou. “... ‘Independência ou morte!”, concluiu, olhando ao redor. A chance de alguém ali falar “então morte!” era pequena. Mas vai quê.