“Ora, aparece uma tendência nas pessoas como o senhor Terray de ter como problema dominante os outros. E então, o problema do outro substitui o problema do eu, e o problema da injustiça abstrata substitui o problema do sentido. O problema é que quando refletes acerca do sentido, chegas num determinado momento também ao problema da justiça, mas, se te bloqueias desde o começo no problema da justiça, já não tens tempo, já não tens como chegar ao problema do sentido. Assim chega alguém a ser ativista. O ativista é, por definição, alguém que não tem tempo de pensar, que é ativo até a insônia.”
E ao argumento, sempre pronto à boca dos defensores do comunismo, de que “a ideia é boa, mas foi mal aplicada” – ou seja, ainda não foi aplicado corretamente –, Pleşu objeta: “Mas que significa uma ideia boa? [...] O marxismo pretende que uma ideia é boa se é verificada pela prática. Não existe teoria válida se ela não é verificada, não é legitimada praticamente. [...] Uma ideia se valida pelos seus resultados. Se uma ideia é boa, mas não é aplicável, se se estabelece que onde quer que se tenta não se mantém, então ela já não pode ser chamada ideia boa, chama-se utopia”.
É impressionante, aterrorizante até, que, mesmo diante de tudo o que foi feito em nome do comunismo, um número considerável de pessoas influentes ainda o defenda
Após o ensaio há uma rápida sequência de perguntas e respostas que se sucederam à exposição da conferência cuja transcrição constitui o ensaio, em que Pleşu ainda faz uma bela ponderação a respeito de algo que, curiosamente, antes de ler o livro, eu fiz no fim de semana numa das minhas redes sociais – sim, voltei a postar com parcimônia: “Mas parece-me correto dizer que não deve ser confundida a esquerda com o comunismo, assim como não deve ser confundida a direita com o fascismo”.
Liiceanu, no ensaio que dá título ao livro, busca refutar filosoficamente as principais ideias comunistas, tais como a dos “cinco modos de produção”. Diz ele: “Depois de 1948, ensinava-se a história da Romênia da seguinte maneira: qualquer criança descobria na escola que a história da humanidade é uma sucessão de algumas ʻordens sociaisʼ ou ʻmodos de produçãoʼ. Ou seja, a comunidade primitiva, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e, eis, apresentado triunfalmente por todas as vias e tendo já na URSS um ado glorioso de 30 anos, o socialismo, recém-aparecido. Ele era a variante embrionária do comunismo, ʻem que entraremosʼ. Depois dele, o tempo da história se fechará sobre si. A humanidade traquinará numa relva de eternidade da história. Não seremos imortais, mas seremos todos felizes e iguais. E, todos nós, gênios”.
O problema, diz Liiceanu, é que se os três primeiros modos de produção foram espontâneos, orgânicos, e ocorreram de acordo com as circunstâncias, “ninguém construíra, ʻcientificamenteʼ, num laboratório do pensamento econômico, o feudalismo ou o capitalismo e, por isso, eles se apresentavam semelhantes a macieiras selvagens crescidas à margem do caminho”. No entanto, “ao contrário das ordens precedentes, desenvolvidas de maneira natural uma da outra, o comunismo aparece como um ʻartefatoʼ. Ele é construído. [...] Ele aparece como um voluntarismo extremo e se manifesta como um golpe na história soldado com a aparição de um ʻhomem novoʼ. Doravante acabou-se com o ʻhomem caídoʼ das economias pré-comunistas! A revolução econômica e política é apenas o meio de ʻcriarʼ outro homem, um homem que trabalha alegremente (ʻé não alienadoʼ), ʻomnilateralʼ, ʻalegrando-se livremente com os seus sentidosʼ, em suma, o ʻhomem totalʼ. O império do comunismo é deste mundo”. E arremata: “É certo, junto com ela [a massa proletária], entrará em cena também a morte. Mas uma morte salutar. O ʻhomem novoʼ desprender-se-á, vitorioso e com o punho cerrado, de um monte de cadáveres”.
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O comunismo é, desse modo, uma ficção, mas uma ficção, segundo Liiceanu, mais forte que a realidade: “O comunismo sempre se escondeu atrás de um ʻainda nãoʼ, atrás de um ʻexatamente no ponto deʼ e atrás da irrealidade de um futuro atingido assintomaticamente. Nunca, ali onde o ʻsocialismo venceuʼ, o presente foi tão duramente oprimido em nome desse futuro fictício.” Irretocável.
Já Patapievici buscará nos mostrar, no ensaio A memória dividida: Reflexões acerca do comunismo: os seus efeitos e os nossos defeitos, as ligações intrínsecas entre comunismo e fascismo como duas faces de uma mesma moeda totalitária e sanguinária. Ele inicia dizendo:
“Se as ideias dos ditadores fascistas já não gozam hoje senão da aprovação de grupos marginais, minoritários, a quem a lei fundamental da maioria dos países mantém com vigilância num estado de marginalidade que se encontra no limite da legalidade, as ideias dos ditadores comunistas ou socialistas gozam de uma larga simpatia pública e beneficiam-se tanto da promoção acadêmica quanto do apoio legal internacional, em nome dos direitos humanos.”
O livro de Liiceanu, Pleşu e Patapievici deve ser lido por todos aqueles que pretendem compreender os gravíssimos problemas de se normalizar o comunismo a partir de uma idealização irrefletida
E busca uma resposta para esse absurdo no que chama de assimetrias filosóficas ideais entre fascismo/nazismo e comunismo. E argumenta: “o comunismo reivindica para si ideias que são válidas também hoje (igualdade, fraternidade e liberdade), só que as distorceu. Ao o que o nazismo invoca ideias em que ninguém mais crê hoje, ora, mais ainda, essas ideias provocam uma repulsa moral unânime”. Mas Patapievici dirá que é simplesmente mentira dizer que o comunismo baseia-se nos ideias iluministas; em vez disso, baseia-se “na ideia da luta de classes, na ideia da derrubada, pela violência, da ordem social existente, na ideia da organização, pela violência, da sociedade, na ideia da suspensão das liberdades em vista da supressão das desigualdades, na ideia de censura preventiva da liberdade de expressão, na ideia do partido único e da realização do Estado totalitário, na ideia da ideologização permanente da sociedade, enfim, na ideia expressa popularmente por Stálin, com o gracejo que não se pode fazer omelete sem quebrar ovos”.
E mapeia essa assimetria em quatro fatores: 1. a “dificuldade em aceitar a origem comum dos regimes totalitários”; 2. o “comunismo é percebido como modernista, ao o que o fascismo é percebido como antimodernista; 3. um “tipo de incapacidade moral de aceitar os fatos”; e, por fim, 4. a “falta de clareza moral dos homens de hoje quanto às relações entre as insatisfações deles diante da sociedade em que vivem e a imagem idealizada que continuam a ter quanto às defuntas sociedades comunistas”.
Pois bem, caríssimo leitor, esse é apenas um aperitivo desse importante livro, que deve ser lido por todos aqueles que pretendem compreender os gravíssimos problemas de se normalizar o comunismo a partir de uma idealização irrefletida. Os autores, dos quais já tratei em outra ocasião – inclusive seu mestre, o platônico Constantin Noica –, são pensadores argutos e experientes, e sabem como poucos na atualidade expor suas ideias com sincera clareza e objetividade. Por isso julgo não só oportuna, mas urgente a publicação de suas obras, que Elpídio vem, de modo absolutamente abnegado e benevolente, vertendo para nossa língua com a dedicação de um vocacionado. Leiam e divulguem, pois a construção de uma democracia sadia a pela percepção acurada de seus desvios e descarrilamentos.