A razão está antes de mais no seu protagonista, Pai Tomás (“Uncle Tom” é, nos EUA, o mais violento insulto que se pode lançar a um negro), que é não um líder revoltoso, um Spartacus, como quereria o movimento negro americano, mas um mártir, dócil e piedoso, que aceita todos os castigos como penitências e que perdoa a todos os seus inimigos. Tomás é um homem de extrema nobreza, sem uma réstia de servidão, com uma coragem física e uma abnegação suprema, que reconhece a ignomínia da escravatura e que não a aceita de forma alguma, mas que recusa a violência como forma de resistência e que é incapaz de mentir mesmo ao mais vil dos homens – não por medo, mas por respeito a si próprio. Tomás é um santo, quando os negros americanos do século XX buscavam um herói.

No entanto, é preciso que voltemos a olhar com bons olhos para a obra seminal de Harriet Becheer Stowe, pois nela há muitos ensinamentos que podem servir, ainda hoje, aos jovens e adultos negros que têm se deixado vencer pela nocividade da discriminação e do racismo. É preciso que voltemos a enxergar o poder da fé diante das injustiças e da falta de perspectivas. As críticas ao Cristianismo, tão presentes atualmente nas correntes pan-africanistas do movimento negro, devem ser confrontadas com a realidade, com a verdadeira influência – controversa e eivada de antagonismos, mas real – do Cristianismo não só na cultura americana em geral, mas, sobretudo, na vida dos negros americanos em particular, que puderam fazer de sua fé um esteio de sua perseverança nos difíceis tempos da escravidão e após eles, no enfrentamento das Leis Jim Crow, na perseguição, nas torturas e assassinatos provocados pela Ku Klux Klan – organização que se denomina cristã, mas age totalmente contra os preceitos do evangelho do Cristo –, e contra o racismo em geral. É preciso que não só notemos, mas compreendamos a imensa força que a Igreja Negra teve na cultura americana – e na brasileira –, da música à educação, da política às artes, do entretenimento à ciência. É preciso que observemos as próprias palavras finais do romance, que nos oestam para o poder salvador que sua autora via no Evangelho:

Se esta raça perseguida é capaz de triunfar de tantos obstáculos, que não faria ela se estivesse sob a proteção da Igreja, segundo o verdadeiro espírito cristão? […] Mas qual é essa influência, poderosa e misteriosa, a que estão submetidos todos os países? De onde procede que, em todas as línguas, se erguem reclamações em favor da liberdade e da igualdade? Ó Igreja de Cristo, compreende o sinal dos tempos! Essa influência não será o Espírito daquele cujo reinado ainda está por vir, e cuja vontade será feita assim na terra como no céus? Quem poderá, então, deter a sua cólera? Não disse Ele que “esse dia há de arder como uma fornalha, e Cristo aparecerá para depor contra aqueles que arrancam o salário ao pobre, oprimem a viúva e o órfão, privam o estrangeiro dos seus direitos; e Ele despedaçará o opressor? Não serão temíveis essas palavras para uma nação que contém em si tão flagrante injustiça?

Esse poder eu também vejo, uma vez que sou cristão. Portanto, caso queiram chamar-me por tão nobre epíteto, estejam à vontade. De minha parte, somente direi: “Pai Tomás, com muita honra”.

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