O livro é interessantíssimo, pois, para mim, é uma demonstração cabal de como o politicamente correto nada tem a ver com a defesa de direitos, mas com um tipo de recurso retórico que visa a controlar a linguagem e as ações das pessoas. Stephen Fry, que é um homem de esquerda, homossexual assumido, pontua bem em sua entrevista inicial: “acho que a esquerda, se ela quer conquistar tudo o que deveria, é uma questão de como se atinge o objetivo maior de tornar a sociedade mais tolerante, não de prescrever o uso da linguagem e forçar as pessoas a usar frases desconfortáveis e idiotas”. Peterson também se mostra bastante incomodado com o discurso castrador do politicamente correto, dizendo: “A coisa da liberdade de expressão é realmente interessante porque, na esquerda radical, não existe discussão sobre liberdade de expressão. Você não pode ter uma discussão sobre liberdade de expressão daquela posição ideológica porque lá não existe tal coisa. Tudo o que há são aqueles que manobram, por poder, em seus grupos respectivos, fazendo reivindicações que os beneficiam”.
Michelle Goldberg foi sincera ao dizer que “há várias coisas que caem sob a rubrica do politicamente correto que eu não considero progresso”, e tentou se colocar numa posição intermediária em relação ao tema, dizendo que, na verdade, em muitos casos, a única coisa que estão pedindo é por “um pouco mais de educação. [...] Algumas dessas mudanças parecem antinaturais para as pessoas; elas meio que ficam entaladas na garganta. As mudanças que funcionam e têm utilidade social serão incorporadas com perfeição à linguagem, e as que não funcionam vão desaparecer, assim como desapareceram as exigências mais exageradas de épocas anteriores de agitação política”. Ela usou como exemplo a mudança do termo índio para indígena, mas não sei o quanto isso, na prática, mudou mesmo. Muito provavelmente tem mais adesão nas redações de jornais que no dia a dia das pessoas.
Michael Eric Dyson é, sem sombra de dúvidas, o sujeito mais intragável e desonesto desse debate, pois não foi capaz, nem por um minuto, de manter-se no tema a ser debatido. O que fez foi desferir insultos e provocações ad hominem a torto e a direito, como se tivesse pensado: “essa é minha oportunidade de lacrar e não vou perdê-la por nada”. Negro, pastor e militante – não necessariamente nessa ordem –, da linha de Al Sharpton e Jesse Jackson, transformou sua participação num amontoado de acusações de privilégio e racismo; é difícil acompanhar os seus “argumentos” sem irritação. Em sua entrevista inicial, já dispara – leviandade que repete durante o debate –: “Quando ouço homens brancos bancando os snowflakes, choramingando e reclamando sobre privilégio – falarei disso hoje à noite, mas agora vou apenas citar aquela grande influência, Keyser Söze, que supostamente disse que a maior façanha do diabo foi fazer com que as pessoas acreditassem que ele não existe. Esse é o privilégio do homem branco”.
No entanto, é forçoso itir que ele, de certo modo, acerta quando diz: “Não tenho certeza, mas quando eu consulto a história parece que foram os brancos que inventaram a raça. E agora que isso saiu do controle e vocês perderam a narrativa... agora vocês ficam chateados? Os negros não inventaram a raça. As mulheres não inventaram o gênero”. Durante os séculos de escravidão os negros foram impedidos de exercerem sua individualidade, sendo vistos como um grupo. Ele generaliza muito, mas tem um ponto. Durante o debate, entre um insulto generalizado e outro, Dyson dirá:
“As políticas identitárias têm sido encaradas como uma bête noire [ovelha negra] pela direita, e mesmo assim a direita não compreende o grau com que a identidade foi imposta sobre as pessoas negras e as pessoas mulatas [...] desde o começo, e sobre as mulheres e as pessoas trans. Vocês acham que eu quero fazer parte de um grupo que é constantemente abominado pelas pessoas na Starbucks? Estou cuidando dos meus assuntos de negro, andando pela rua, e empurram a identidade de grupo em cima de mim. Eles não dizem: ‘Ah, aha, lá vai um negro – muito inteligente, articulado, eloquente, capaz de investir em uma fúria retórica num piscar de olhos –, e a gente não devia interrogá-lo sobre a bona fide de seu status legal’. Não, eles me tratam como parte de um grupo, e o problema – que os nossos amigos não querem reconhecer – é que a hegemonia, a dominância daquele outro grupo tem sido tão perversa que negou para nós a oportunidade de existir como indivíduos”.
Tudo muito bonito e eloquente, mas que não tem nada a ver com o debate. E ainda, posteriormente, chamou, numa provocação absolutamente despropositada, Peterson de “homem branco perverso e raivoso”.
“A coisa da liberdade de expressão é realmente interessante porque, na esquerda radical, não existe discussão sobre liberdade de expressão. Você não pode ter uma discussão sobre liberdade de expressão daquela posição ideológica porque lá não existe tal coisa.”
Jordan Peterson, nos Debates Munk
Stephen Fry pondera e tenta colocar as coisas no lugar: “minha maior objeção ao politicamente correto não é que ele tenha tanto a ver com as coisas que desprezei e às quais me opus a vida inteira: pregação (com todo respeito), piedade, arrogância, caça às bruxas, delações, shaming, afirmações sem evidências, acusações, inquisição, censura. Não é por isso que estou incorrendo na ira dos meus companheiros liberais [o tradutor usou o termo original em inglês, liberal, que no Brasil tem o sentido de “progressista”, e não liberal clássico] ao me posicionar deste lado do debate. Minha real objeção é que acho que o politicamente correto não funciona”.
E Jordan Peterson coloca uma questão – que não é respondida durante todo debate:
“O que não vejo acontecendo na esquerda – e isso em consideração à esquerda sensível, porque existe tal coisa – é a mesma coisa sendo feita em relação à esquerda radical. Então, aqui vai uma questão aberta: se a diversidade, a inclusão e a igualdade não são o triunvirato que caracteriza a esquerda exagerada – e, a propósito, a igualdade definida não como igualdade de oportunidades, que é um objetivo absolutamente louvável, mas igualdade de resultados, que é como eles definem –, então como, exatamente, nós demarcaremos a esquerda extremista? O que nós fazemos?”
Ou seja, o que era para ser um debate sobre o conceito de politicamente correto e seus efeitos práticos na sociedade contemporânea se transformou numa discussão sobre raça e gênero. Peterson e Fry saíram visivelmente decepcionados; Dyson e Goldberg (mais Dyson), com a sensação de terem exposto e envergonhado um fascista – nesse caso, Peterson. Goldberg ainda, quase no final do debate, distorce descaradamente uma entrevista de Peterson ao site Vice, dizendo que ele teria defendido que “se as mulheres não querem que o ambiente de trabalho seja sexualizado, elas não devessem ter permissão de usar maquiagem”. O que ele disse, na verdade, é que a maquiagem é um evidente componente de sexualização (ele ainda pede ao entrevistador que encontre outra serventia ao batom vermelho que não a atração, mas ele não consegue). Óbvio que suas declarações são polêmicas, e ninguém gosta de itir – pois é algo absolutamente natural em nossa cultura – que saltos altos servem para inclinar a região pélvica, deixando-a mais sensual e atrativa. Pois é, é duro de ouvir, mas é verdade.
Mas o livro é ótimo, com momentos argumentativos realmente interessantes, e vai agradar tanto pessoas à direita quanto à esquerda, pois, como em todo debate atual, o que as pessoas querem mesmo é somente marcar suas posições. Boa leitura!