A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como “projetos” –, como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.
Bonito, não é mesmo? Mas é ridículo. Hermético e quase incompreensível. Ideológico.
Um professor que não transmite conhecimentos, cuja ideia de mero facilitador, oriunda da Escola Nova e que já foi tratada no antigo anterior, sem qualquer papel moral na educação, é uma das grandes causas da desordem atual. Deu espaço ao ideólogo, que julga ser necessário despertar no aluno o chamado espírito crítico, que o libertará das garras da opressão. Esse é o fundamento da desordem que favorece as utopias ideológicas. E pensar que essa sandice está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que diz, em seu artigo 35, que o ensino médio tem como uma de suas finalidades: “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (grifo meu). No entanto, qual é a definição de pensamento/espírito crítico? A LDB não diz. Assim instaura o criticismo vazio, que a tudo critica sem nada compreender. Como diz magistralmente o filósofo romeno Constantin Noica, em seu Diário filosófico (É Realizações): “A absurdidade do espírito crítico é que quer preceder; portanto, ser independente de outra coisa. Quem contesta que você tem de ter espírito crítico? Mas interessa o resto, não ele. É como se tivesse inventado o freio antes do automóvel”. Como desenvolver o espírito crítico se a ideologia socialista arranca dos jovens o espírito – no sentido de uma consciência madura e racional –, perpetuando o estado juvenil de a tudo contestar?
Mas não desejo, aqui, aprofundar a análise da obra de Paulo Freire – trabalho que meu caro amigo Thomas Giulliano, historiador e professor competente, tem feito em seu canal no YouTube e em suas obras Desconstruindo Paulo Freire (org.) e Desconstruindo (mais ainda) Paulo Freire, ambas publicadas por sua editora História Expressa. Minha intenção, na verdade, é mostrar que o problema é geral e foi diagnosticado com profunda e aterradora competência, por duas educadoras sas – Isabelle Stal e Françoise Thom –, ainda na década de 1980. O livro A escola dos bárbaros (Edusp) é um retrato cru e realista da educação contemporânea que, apesar de falar da realidade no país de Alexandre Dumas, revela proximidades exatas com a situação brasileira.
Elas iniciam dizendo que uma das grandes causas desse estado de coisas é o nascimento de pedagogia moderna – para usar o termo empregado por Inger Enkvist. Já na introdução, o grande Alain Besançon diz que “para ensinar não há outro método senão o de penetrar, antes de mais nada, na disciplina que se quer transmitir, já que as formulações mais claras, mais fortes e mais simples são as que vêm por último, ao termo de um longo esforço. Ao contrário, a pedagogia, como hoje é considerada, está desligada do saber, pretende substituí-lo e ocupar o seu lugar”. E assevera: “A ‘pedagogia’ tem um aspecto social: atrai o intelectual proletaróide, prometendo-lhe uma revanche contra o competente e o sábio. Mas tira também sua força de uma paixão política, a igualdade”.
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Mais à frente, as educadoras diagnosticam que “[...] a escola, afastada de seus objetivos tradicionais, transformou-se em um campo de experimentação aberto a todas as utopias”. E completam, especificando a qual utopia se referem:
O socialismo, como o entendemos, não se identifica com partidos, programas ou tradição histórica, nem é apanágio deste ou daquele país. É um fenômeno característico das modernas sociedades de massa, em que a proliferação dos direitos engendra um irresponsabilidade crescente das pessoas, em que a exigência igualitária insaciável em seu princípio, perverte e ideia de justiça em que o saber cessa de ser cultivado por si mesmo e se torna instrumento da vontade de poder.
É exatamente isso que ocorre em nome da “libertação” pregada por militantes travestidos de professores, como Paulo Freire; a submissão a todo tipo de tirania ideológica em nome de uma suposta crítica ao sistema. Nesse sentido, Stal e Thom também acusam duramente a pedagogia moderna:
A pedagogia não é uma ciência porque não tem objeto; um ensino de cada disciplina produz seus métodos, que são aperfeiçoados às apalpadelas, por ajustamentos sucessivos, e representam um compromisso entre o temperamento intelectual do professor, suas qualidades humanas e o público a que se dirige. Nunca será demais repetir que a condição necessária – senão suficiente – de uma boa pedagogia é o conhecimento profundo e o domínio intelectual da disciplina ensinada: em verdade, somente eles permitem a simplicidade e a elegância na exposição, a flexibilidade e a variedade dos tratamentos do assunto que fazem o verdadeiro pedagogo. Por aí se compreende a aberração dos projetos atuais, que querem incluir, na preparação dos grandes concursos, o estudo da pedagogia com o mesmo valor da disciplina considerada.
Portanto, como é possível perceber, essa ideologização da educação é algo que surgiu há tempos e penetrou, de maneira indelével e indistinta, em toda burocracia educacional, tornando praticamente impossível tratar da educação como um processo de aquisição de conhecimentos com o objetivo de preparar um indivíduo para a vida. Com a ajuda das pedagogias modernas, a sociologia marxista penetrou na educação e tornou o processo educativo uma batalha contra a sociedade que os ideólogos julgam opressora. E, como dizem Stal e Thom, “é difícil, para os professores de boa fé, evitar a atração desse nada, essa vertigem do vazio”. E há um elemento absolutamente nefasto nisso, pois a “educação tradicional pretendia controlar elementos tangíveis: conduta, conhecimentos e resultados. Ela se não arrogava plenos poderes sobre o espírito e os sentimentos do aluno”. A pedagogia moderna trabalha com abstrações, produzindo, em vez de indivíduos maduros, eterno mimados coletivistas. E veja, prezado leitor, como dizem as educadoras, “não é o risco de doutrinação que é grave (os alunos tornam-se amorfos e sem reação), mas o vazio que se forma nos cérebros e a apatia que disso resulta. Desconhece-se o prazer da reflexão e da descoberta. O ensino não estimula o gosto e nem o pensamento”. Nisso, dizem, “a pedagogia e a ideologia são feitas uma para a outra: uma grita ‘mata!’ e a outra berra ‘rebenta!’... A pedagogia engendra o vazio e a ideologia o preenche com ruídos”. A burocracia da educação, portanto, está absolutamente dominada de ideologias igualitárias de raiz marxista; os professores, em sua maioria, são meros reprodutores desse sistema nefasto; sequer percebem a sordidez desse projeto que, há muito, foi implantado, aos modos gramscianos, via intelectuais orgânicos, a fim de garantir um projeto de poder político que colocasse a sociedade à mercê de ideólogos e seus projetos utópicos. Como explica Roger Scruton, em Pensadores da nova esquerda (É Realizações), o projeto de Gramsci, uma revisão da revolução do proletariado, não seria via revolta armada, mas pela substituição gradual de uma hegemonia por outra:
A política comunista envolverá a substituição sistemática da hegemonia dominante. Assim, a superestrutura será transformada de forma gradual, ao ponto em que a nova ordem social, cuja emergência foi permanentemente bloqueada pela velha hegemonia, pode finalmente de vir à tona sob seu próprio impulso. Este processo é chamado de “revolução iva”, e pode ser realizado somente pela conjunção de duas forças: a exercida de cima pelos comunistas intelectuais, que gradualmente deslocam a hegemonia da burguesia, e aquela exercida de baixo pelas “massas”, que carregam em si mesmas a nova ordem social que cresce por seu trabalho. A transformação ocorre somente quando estas forças agem em harmonia, como um “bloco histórico”: e o papel do partido é produzir esta harmonia, ao unir os intelectuais às massas em uma só força disciplinada. Este partido é o “Príncipe moderno”, o único agente da mudança política verdadeira, que pode transformar a sociedade somente porque absorve em sua ação coletiva todas as menores ações da intelligentsia, e combina-se com a força das massas proletárias, dando força a uma e orientação a outra. […] Os intelectuais comunistas e as massas estão, acreditava ele, vinculados por uma simpatia instintiva; isto removeria a necessidade do governo coercitivo e colocaria em seu lugar, por consenso, um governo ideal.
Nesse ponto, Antonio Gramsci e Paulo Freire se encontram, como este mesmo diz, num diálogo com Moacir Gadotti e Sérgio Guimarães no livro Pedagogia: diálogo e conflito (Cortez): “Para mim, o caminho gramsciano é fascinante. É nessa perspectiva que me coloco. No fundo tudo isso tem a ver com o papel do chamado intelectual, que Gramsci estuda tão bem e tão amplamente. Para mim, se a classe trabalhadora não teoriza a sua prática é porque a burguesia a impede de fazê-la. Não porque ela seja naturalmente incompetente para tal. Por outro lado, o papel do intelectual revolucionário não é o de depositar na classe trabalhadora, que também é intelectual, os conteúdos da teoria revolucionária, mas o de, aprendendo com ela, ensinar a ela”. Porém, os professores, em sua maioria, que antes eram os intelectuais revolucionários, hoje são massa, e transmitem a ideologia ivamente sem ao menos distinguirem o processo, pois desconhecem tanto suas bases quanto o seu contraponto. Que professor do ensino básico, atualmente, conhece Gramsci? E quais, o conhecendo, são capazes de fazer uma apreciação crítica de sua obra? São formados numa única visão de mundo; todas as demais foram devidamente demonizadas por seus antecessores. São, eles sim, doutrinados. Mas isso não os absolve da culpa que lhes cabe, pois o papel do acadêmico que se prepara para a docência é ampliar os seus horizontes de conhecimento, buscando sempre analisar profundamente os conteúdos que lhe são transmitidos, sob a pena de se tornar um destruidor de inteligências – de vidas.
Atualmente, numa estrutura educacional absolutamente destruída como se encontra a atual, tal sistema funciona praticamente por inércia. Por isso, a doutrinação é grave, mas os problemas estruturais são infinitamente maiores.