Se Hitler era estúpido ou um criminoso, e o povo votou nele em manadas, então o povo também deve ter sido estúpido e criminoso. Mas isso não é possível, então Hitler não era estúpido nem criminoso. A outra possibilidade, o ponto que está sofrendo resistência, é que talvez um grande número de alemães, talvez a grande maioria, eram de fato extraordinariamente estúpidos, que, em matéria política, um grande número ainda seja, e que o que vemos aqui seja uma situação de apodrecimento intelectual e ético que, de fato, fundamentou a ascensão do fenômeno de Hitler. Não é apenas um problema alemão. É um problema internacional.

Culpa, para Voegelin, “é sempre algo que pode ser atribuído a uma pessoa”, por isso, o nível de responsabilidade de cada indivíduo é altíssimo, pois “se uma sociedade é desse tipo que elege imbecis criminosos e escroques como representantes, então a sociedade como um todo está numa situação muito desagradável, porque os que não estavam dispostos a eleger imbecis criminosos e escroques como seus representantes são apanhados juntos e enforcados juntos”. Desse modo, ele aprofunda a questão de como foi possível eleger alguém como Hitler, analisando o conceito de “ado indomado”, que foi um dos motes da culpa coletiva. Diz ele: “Quando ouvimos a expressão 'o ado indomado', aflora uma série de perguntas: o que isso realmente significa, primeiramente? Para quem é este ado indomado, partindo do pressuposto de que saibamos o que 'domar' significa: para todas ou só para algumas poucas pessoas? Porque ele de fato foi domado por muitos enquanto ainda era o presente, já que de maneira nenhuma todas as pessoas que viveram o período nacional-socialista cooperaram alegremente com ele”. Ou seja, muitos – como Karl Kraus, Thomas Mann e o próprio Voegelin – compreenderam o que estava acontecendo assim que Hitler ascendeu ao poder, e aram a criticar o regime duramente; no entanto, a maioria do povo alemão sucumbiu.

Voegelin levanta, então, um dos insights mais poderosos para se compreender a ascensão de um movimento ideológico, o presente sob Deus. Como o ado era presente para muitos que viveram na época do nacional-socialismo, Voegelin diz:

Agora o que é o presente indomado? Primeiro, o que é o presente? O presente pode significar duas coisas. Em primeiro lugar, pode-se falar hoje da noção ideológica e socialmente comum do presente como um ponto no presente (Gegenwartspunkt), estendendo-se entre o ado e o futuro. Então, o tempo da História é representado como indo numa linha do ado para o futuro através de um ponto no presente, e deste ponto de vista entende-se o presente. Assim, os eventos contemporâneos são eventos que ocorrem no ano de 1964; eventos ados ocorreram no ano de 1930. A par dessa concepção linear do presente, que existe nessa forma apenas desde o século XVIII como uma noção inteiramente ideológica, há aquele outro significado do presente, em que este está sempre relacionado com a existência do homem em sua presença (Präsenz) sob Deus. À medida que – ao existir e atuar no tempo imanente – o homem existe sob Deus, ele tem presença. E o significado do ado e do presente tornar-se-á geralmente interpretável somente quando tiver seu princípio nessa presença. Pois, de outro modo, tudo procederia de maneira irrelevante numa corrente de tempo externa.

Nossa existência temporal só faz realmente sentido diante da consciência de que vivemos “sob Deus”, e que nossa realidade corpórea vive em tensão com o fundamento divino do nosso ser. Tal consciência já estava presente na filosofia clássica de Platão e Aristóteles, que Voegelin chama de “experiência clássica de razão”. A consciência humana, nesse sentido, tem o caráter de participação (metaxy) como pólos de uma experiência divino-humana; nesse processo, a consciência ilumina a si mesma como um lugar de tensão existencial em direção ao fundamento: “Colocar-se sob a presença, sob a presença de Deus e, de acordo com isso, julgar o que se faz como homem e como se forma a ordem da própria existência e a existência da sociedade é, para Platão, um ato de julgamento. Isso significa que o homem está sempre sob julgamento”. Isso amplia muito nossa visão da própria política, pois a ação humana já não pode ocorrer sem que essa tensão seja observada. Isso não tem a ver somente com o nazismo, mas com toda realidade política e as ideologias que dela se apoderam. Ao deixar de ser considerada uma ciência da ordem (do Ser), a ciência política foi amplamente deturpara por ideologias. Voegelin é muito claro em relação a isso. Em A nova ciência da política (UnB), diz que “somente quando a ontologia se perdeu como ciência e quando, em consequência disso, a ética e a política já não podiam ser entendidas como ciência da ordem na qual a natureza humana alcança sua máxima realização, ou a ser possível considerar este campo do conhecimento como suspeito de ser o repositório de opiniões subjetivas e não-críticas”.

Uma sociedade deve funcionar harmonicamente, com seus membros capazes de discernir a realidade da tensão em direção ao fundamento. Diz Voegelin: “Toda sociedade que funciona, uma sociedade de patrícios, é fundada na cortesia, nos compromissos, na concessão às outras pessoas. Quem quer que tenha uma idéia fixa e queira realizá-la, ou seja, quem quer que interprete a liberdade de expressão e a liberdade de consciência de tal modo que a sociedade deva comportar-se da maneira que ele considera correto, não está qualificado para ser cidadão de uma democracia”. No entanto, essa consciência da realidade foi perdida na linguagem ideológica. Desse modo: “As manifestações típicas dessa perda de realidade são aquelas em que a realidade do homem é colocada no lugar da realidade divina perdida, que sozinha fundamenta a realidade do homem, de tal forma que no lugar do fundamento do ser como causa do ser, o homem como a causa do ser chega ao ponto da exageração na idéia de ser o homem o criador do mundo”.

A esse fenômeno de perda da realidade, Voegelin cunhou o termo estupidez, emprestado de Robert Musil e seu ensaio Sobre a estupidez (Âyiné). Diz ele: “A estupidez deve significar aqui que um homem, por causa de sua perda de realidade, não está em posição de orientar corretamente sua ação no mundo em que vive. Então, quando o órgão central que guia sua ação, sua natureza teomórfica e abertura para a razão e o espírito, deixar de funcionar, o homem agirá estupidamente”. Numa análise minuciosa do ensaio de Musil – sobre o qual já falei em artigo anterior, aqui, nesta Gazeta do Povo –, mostra que o estúpido age “com base numa imagem defeituosa da realidade, e, assim, cria a desordem”, numa espécie de revolta contra o espírito. Tal desordem é um componente catalizador de ideologias destruidoras. Se um pensador ou político é, nesses termos – que, como dito, para Voegelin, assim como para Musil, não é mera adjetivação, mas um conceito – um estulto, um tolo (do hebraico nabal, diz Voegelin), as consequências de suas ações podem ser desastrosas. Mesmo que este seja, para todos os efeitos, uma pessoa boa: “O perigo agora é sempre este: quando uma sociedade está em tamanha desordem como a sociedade alemã estava, o tipo mensageiro de banco, em si mesmo um tipo completamente honrado e decente, chega ao topo e descarrega a devastação”. Daí a saída seria a prevenção, ou seja, “como uma sociedade pode ser tão organizada que esses tipos peculiares de simplicidade e estupidez não se tornem politicamente efetivos, e menos ainda dominantes socialmente, e determinem a sociedade”.

Creio que, em nosso caso, infelizmente, a desordem já foi instaurada; cabe a nós, enquanto podemos, evitar que essa combinação entre simplicidade e estupidez – também uma constante em nossa política há muito – não se torne uma estupidez criminosa – “quem quer que, como estúpido, num lugar da sociedade em que não poderia estar, dá ordens ou tenta instruir outros, é um estúpido criminoso” – e nos faça reféns.

Por isso a obra de Eric Voegelin é fundamental para nós; toda ela pode ser resumida no esforço de recuperar a realidade, a fim de escaparmos das armadilhas ideológicas. Diz Voegelin, nas Reflexões:

Recuperar a realidade, resgatando-a da deformação a que foi submetida, exige bastante trabalho. É preciso reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade. É preciso, ao mesmo tempo, investigar a técnica e a estrutura das deformações que se acumulam no dia-a-dia. E é preciso desenvolver conceitos que permitam agrupar em categorias a deformação existencial e sua expressão simbólica. Por fim, a condução desse trabalho deve dar-se não somente em oposição às ideologias deformadas, mas também à deformação da realidade por intelectuais cuja obrigação seria preservá-la, como os teólogos.

Conheci Voegelin, através de um amigo, em meados de 2007; fiquei tão impressionado que fiz dele tema de minha monografia na graduação em Filosofia, entre 2009 e 2011; e, desde então, sempre volto às suas obras. Podes também, caríssimo leitor, encontrar algumas breves análises minhas dessa proposta voegeliniana, em minha série de artigos Uma luz para a educação, também aqui na Gazeta do Povo.

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