Por exemplo, não entra na cabeça de minha mãe, de jeito nenhum, que uma geração de nativos digitais, bombardeada de informações 24 horas por dia, cercada de facilidades e com um sem-número de cursos e profissões para escolher, simplesmente não escolhe nada; eles são, em sua grande maioria, apáticos, indecisos e – não raro – desmesurada e irremediavelmente infelizes. Se a geração do pós-guerra foi a dos rebeldes sem causa, a geração atual é dos deprimidos sem causa.

Óbvio que muitos problemas dessa geração são reais; é a geração dos pais separados, do vício nas redes sociais, do prazer efêmero, da atenção de 15 segundos, da iliteracia, da infinidade de gêneros. E, sobre esse último tema, lembrei-me da entrevista da filósofa e crítica cultural Camille Paglia no programa Roda Viva, em 2015.

A Geração Z é a geração dos pais separados, do vício nas redes sociais, do prazer efêmero, da atenção de 15 segundos, da iliteracia, da infinidade de gêneros

Paglia é uma figura polêmica, de opiniões fortes e controversas e capacidade intelectual invejável, cujas teses confrontam praticamente todos os consensos de nossa era. Com isso, mesmo sendo feminista, homossexual, ateia e libertária que defende a pornografia, consegue agradar conservadores e desagradar progressistas. Em sua entrevista, que recomendo vivamente, Paglia responde com maestria a todos os questionamentos a respeito de suas ideias, e não foi diferente quando o assunto é gênero. O jornalista Paulo Werneck lhe pergunta: “O século 21 está vivendo o surgimento da cultura transgênero e de mil gêneros; hoje, no Facebook de alguns países, existem mais de cem tipos de gêneros a que você pode aderir; universidades americanas estão dando cotas para novos gêneros que vão sendo criados. Como você enxerga essa cultura transgênero que está surgindo nesse momento e que modifica um pouco esse quadro estável, homem e mulher, do século 20 no qual você se criou?”

A resposta de Paglia é longa. Ela inicia dizendo ser uma pessoa, em certo sentido, identificada como transgênero, que sempre questionou os padrões de vestuário e que sempre teve uma postura transgressora em relação às normas sociais estabelecias. No entanto, diz ela:

“Ainda acredito que existam fundamentalmente dois sexos, que são determinados biologicamente. Há uma zona cinzenta no meio... Comecei a escrever sobre androginia, sobre a mistura dos limites entre homem e mulher, na faculdade; gostava muito do assunto e o encontrava em todo lugar, nas obras, de Shakespeare [...]. Quando cheguei à pós-graduação isso foi tema de minha tese de doutoramento, que teve como título Sexual Personae, eram as categorias de andróginos, que se tornou o título de minha tese. Fiz pesquisa na biblioteca, fui à faculdade de Medicina, pesquisei sobre biologia reprodutiva e aprendi sobre essa área cinzenta entre gêneros. Mas trata-se de um número muito pequeno de casos, um número diminuto de gêneros autênticos que são ambíguos.”

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E completa essa primeira parte da resposta dizendo que há muita mentira e propaganda sobre essa multiplicidade de gêneros; que as cirurgias de resignação sexual não podem mudar o sexo de ninguém e não deveriam ser incentivadas nem mesmo na adolescência; e que tal intervenção, inclusive a aplicação de hormônios para retardar a puberdade, é uma espécie de abuso infantil.

Mas a parte mais interessante da resposta, e a que mais nos interessa aqui, é quando ela fala sobre declínio de civilizações. Ela diz – a resposta é longa, mas importante:

“Em meu estudo histórico em Personas Sexuais, sempre falo sobre as fases mais avançadas de cultura. Sempre fui atraída pelas fases mais avançadas ou decadentes da cultura. Oscar Wilde é um dos grandes expoentes do fim do século 19 e uma das minhas maiores influências na juventude. E descobri, em meus estudos, que a história é cíclica; em qualquer lugar do mundo você encontra um padrão, em períodos antigos, que, quando uma cultura entra em declínio, você tem um surgimento de fenômenos transgênero. Isso é sintoma de colapso de uma cultura. Então, em vez de as pessoas elogiarem o liberalismo [progressismo] humanitário que permite todas essas possibilidades de transgênero aparecerem ou serem encorajadas, eu ficaria preocupada com o modo como a cultura ocidental está se definindo para o mundo. Porque, na verdade, esse fenômeno está incentivando os irracionais e quase psicóticos opositores da cultura ocidental, na forma do Estado Islâmico e outros jihadistas. Nada define melhor o declínio da cultura ocidental para os jihadistas do que nossa tolerância aberta à homossexualidade e essa mania transgênero. Acho que, em qualquer visão de futuro, o futurismo da ficção científica do século 19 e começo do 20 normalmente projetou que homens e mulheres, no espaço distante, começarão a se adaptar em gênero. Você vê isso em Star Wars, o gênero começa a ser apagado, homens e mulheres trabalham lado a lado quase como em uma máquina – há algo de mecânico nisso –, fazendo desaparecer as diferenças de gênero... E, sim, cada vez mais o ʻmasculinoʼ está sendo visto como algo retrógrado, algo paleolítico, que pertence ao ado. No entanto, sigo avisando que, na possibilidade de um desastre de qualquer natureza – desastre político, guerra, fome –, mas também problemas climáticos muito severos [...] Se você estudar história, tudo isso é previsível. Como Roma caiu, o Ocidente cairá. E o que nos restará? Dependeremos dos homens de novo. Precisaremos de homens. As mulheres e crianças ficarão em casa, e os homens terão de sair e caçar animais selvagens com as mãos, cortar a carne e fazer o trabalho pesado. E, de repente, o masculino voltará.”

Toda essa discussão sobre sexualidade tem confundido – e deprimido – os adolescentes de nosso tempo

E ela segue, falando rapidamente e elencando mais uma série de argumentos sobre a relação entre o declínio civilizacional e as discussões sobre gênero que, atualmente, parecem tomar grande parte do tempo nas preocupações dos jovens – mesmo num país como o Brasil, um país com quase 50% da população sem saneamento básico. E Camille Paglia tem mesmo um ponto. Ainda que discordemos dela, não podemos ignorar que toda essa discussão sobre sexualidade tem confundido – e deprimido – os adolescentes de nosso tempo. Hoje mesmo, durante uma aula, enquanto discutia essa questão com alunos do ensino médio, uma aluna tentou elencar todas as letras da sigla LGBTQIA+ etc. e tal, e quase não conseguiu. O fato é que, não tendo mais um conjunto de referências sólidas para seguir, os jovens oscilam, à deriva, num oceano de possibilidades sem encontrar um porto seguro. E estão sofrendo.

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