Para alimentar esses rumores, há o consistório convocado para agosto, mês em que esses eventos não costumam acontecer (agosto é o mês por excelência de férias na Itália toda). E, mais recentemente, houve o anúncio de que Francisco visitará L’Aquila, a cidade onde está enterrado São Celestino V, papa que renunciou com apenas cinco meses à frente da Igreja. E aí todos os comentaristas vaticanos se lembraram de quando Bento XVI deixou seu pálio sobre a urna onde repousa o corpo do papa, em 2009, quatro anos antes de renunciar. Mas as associações só começaram a ser feitas depois que Bento XVI deixou o pontificado, e até onde eu sei o papa emérito jamais confirmou que seu gesto em L’Aquila fosse um “sinal” do que estaria por vir.
Para os roteiristas da renúncia, o que vai acontecer? Francisco realiza o consistório, botando ainda mais “franciscanos”, “francisquistas”, chamem como quiserem, no Colégio Cardinalício; vai no dia seguinte para L’Aquila venerar o corpo de São Celestino V e segue os os desse seu predecessor, anunciando que está de saída; por fim, no conclave, os cardeais escolhem alguém bastante alinhado com Francisco. Mas eu particularmente acho o roteiro bem improvável, e explico por quê.
Duvido muito que Francisco renuncie enquanto Bento XVI estiver vivo. Se “dois papas” já causam confusão suficiente, imagine três
A afirmação aos bispos italianos é o de menos: ela foi feita em tom de brincadeira, como quando ele disse aos bispos mexicanos que o remédio que o faria melhorar mesmo seria tequila. O consistório tem um segundo objetivo, além da nomeação de novos cardeais, que é refletir sobre a reforma da Cúria Romana, já em vigor; esperar até novembro para essa discussão seria demais. Além disso, Francisco já tem uma viagem confirmada ao Cazaquistão em setembro; e sua ida a L’Aquila é motivada pela celebração do Perdão Celestino, instituído por aquele papa em 1294 e um precursor do jubileu celebrado a cada 25 anos pela Igreja Católica: nos dias 28 e 29 de agosto, é concedida indulgência plenária a quem se confessar, comungar e cruzar a Porta Santa da Basílica de Santa Maria de Collemaggio. Como disse John Allen Jr., é um “festival da misericórdia”, tema muito caro ao papa.
E, por fim, há um motivo ainda mais relevante: Bento XVI. Duvido muito que Francisco renuncie enquanto Joseph Ratzinger estiver vivo. Se “dois papas” já causam confusão suficiente, com direito a teorias da conspiração, filmes toscos e católicos “preferindo” um papa a outro, imagine três. Francisco sabe muito bem disso, e não creio que ele deseje agravar a situação. Especialmente porque o papel do papa emérito, convenhamos, não ficou muito bem definido depois da saída de Bento XVI. Essa discussão precisaria ser feita com calma, de preferência antes que haja outra renúncia.
A catolicosfera mais conservadora repercutiu muito uma fala de Francisco aos bispos da Sicília, em 9 de junho:
“A liturgia, como vai? (...) Como [os padres] celebram? Não vou à missa lá, mas vi as fotografias. Falo claramente. Caríssimos, ainda as rendas, os barretes... mas onde é que estamos? Sessenta anos depois do Concílio! Um pouco de atualização também na arte litúrgica, na ‘moda’ litúrgica! Sim, de vez em quando usar a renda da vovó tudo bem, mas de vez em quando. É para agradar a vovó, certo? (...) É bonito homenagear a vovó, mas é melhor celebrar a mãe, a Santa Madre Igreja, da forma como ela quer ser celebrada.”
Bom, se eu estiver errado e Francisco renunciar em agosto, esse é o tipo de afirmação que não vai me deixar saudades. “Sessenta anos depois do Concílio” deve ser a versão católica do “em pleno século 21”. Assim como Francisco, eu também não vou à missa lá na Sicília, então não sei se por ali existe algum problema mais sério de apego a vestes litúrgicas mais elaboradas por mera ostentação, para exibir ortodoxia (real ou fingida) ou sei lá eu. Mas, se é este o caso, o papa precisaria explicar melhor, até porque ele sabe que tudo o que diz acaba pelo menos publicado no site do Vaticano, e por isso fica ível a um universo de fiéis que não estão por dentro do contexto particular da Sicília. E o Concílio Vaticano II não aboliu nem desautorizou veste nenhuma – aliás, muita gente ficaria surpresa ao ver o que os padres conciliares defenderam na Sacrosanctum Concilium, como o uso do latim, ao menos em algumas partes da missa (SC 36 e 54), o canto gregoriano (SC 116) e o órgão (SC 120).
Pois, no fim das contas, o problema não é o barrete nem os detalhes rendados das alvas e sobrepelizes, é a atitude de quem os usa ou deixa de usar. Com essa fala, o papa acaba botando no mesmo saco (ainda que não tenha feito isso de caso pensado) os padres exibicionistas e os padres que simplesmente querem usar uma veste mais trabalhada por motivos muito legítimos (inclusive a ideia de que no culto divino se deve usar o que houver de mais belo). E dá munição para esses últimos serem atacados mundo afora por sacerdotes que desprezam a obediência a tudo que a Igreja pede em termos de liturgia, preferindo até mesmo se disfarçar de leigos – e eu sinceramente considero esses últimos um problema muito mais sério que um padre que usa barrete para se exibir.