É importante lembrar que o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus se encerrou em 31 de dezembro de 2020. Já a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional teve seu fim decretado em 22 de maio do ano ado. Ou seja: sob qualquer marco temporal determinado, o Congresso Nacional segue adotando trâmites do período pandêmico muito depois do seu fim – e o exemplo da tramitação das medidas provisórias é apenas um de tantos que se poderiam dar. Se o formato anterior de tramitação das MPs merece ser rediscutido, que o seja, mas com a devida mudança constitucional. Seguir utilizando agora um modelo que serviu – mal, na minha opinião – no período pandêmico é desrespeitar a Constituição.

A ameaça representada pelo coronavírus já ou há muito tempo, mas o Parlamento nacional adquiriu sequelas graves. As lideranças das duas Casas, acostumadas e até mesmo atendidas por grande parte dessas alterações que concentraram poder em suas mãos, não fazem esforço para tratá-las. Desmerecem, assim, o devido processo legislativo, seus próprios regimentos internos e, claro, os parlamentares. Numa atualização do “casa de ferreiro, espeto de pau”, em vez do desleixo geralmente atribuído ao ditado, trata-se aqui de desrespeito intencional de suas próprias leis por parte da Casa que faz as leis que a sociedade brasileira deve seguir. Em outras palavras: a Casa de Leis brasileiras, que decide o que a sociedade do lado de fora do Congresso Nacional deve ou não deve fazer, com frequência não faz aplicar internamente o que dizem as suas próprias leis (seu regimento interno) ou mesmo a Constituição.

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No caso da tramitação das medidas provisórias, o escracho regimental veio à tona por conta do conflito entre os interesses de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, entre os interesses de determinados líderes na Câmara e do Senado. Sem entrar no mérito da discussão sobre o melhor método para a tramitação das medidas provisórias (que, aliás, merecem um artigo à parte para tratar da incoerência de sua existência no nosso sistema presidencialista de governo), é preciso que o processo constitucional seja respeitado. Há males que vêm para o bem e crises institucionais que deixam resultados positivos. Tomara que seja este o caso aqui.

A pandemia já ou, felizmente, e faz tempo. Assim como a sociedade se adaptou a um “novo normal”, também o Congresso precisa fazê-lo, e o “normal” de um Parlamento sempre estará insculpido em seu regimento e na Constituição. Caso o rito das medidas provisórias, e tantos outros alterados durante a pandemia, mereça rediscussão, que se faça no ambiente correto de uma comissão especial (não de um Grupo de Trabalho, outra excrescência inventada ao arrepio do regimento) e que se altere devidamente a Constituição. Tentar manter soluções temporárias e que hoje são plenamente ilegais e inconstitucionais na base da guerra política depõe contra a respeitabilidade da própria Casa de Leis brasileira. Se o Congresso quer legislar para a sociedade, deve começar por respeitar as regras que definem o seu próprio funcionamento e que foram elaboradas também por parlamentares.