Nada de bom pode vir dessa retórica. O uso pedagógico da Justiça como ferramenta de retaliação ou, pior ainda, de constrangimento e intimidação de, arredondando, metade da população brasileira não combina com a democracia que se afirma defender.
Fato é que, na percepção de uma parcela crescente da sociedade, algumas autoridades do Judiciário parecem comprometidas não com o imperativo da estrita e neutra aplicação da lei, mas com a defesa de determinada agenda em detrimento de outra e com a assunção explícita de um papel político.
Não parece saudável nem inteligente alimentar essa percepção – a não ser que o discurso da defesa da democracia seja apenas retórico e instrumental. Esperemos que não seja.
A reciprocidade entre o delito e a pena, que fundamenta a Lei de Talião, está no cerne da própria ideia de justiça materializada nos primeiros códigos legais, formulados há mais de 4 mil anos
Isso posto, a evocação da Lei de Talião como referência para o Brasil de hoje me parece equivocada. Porque a intenção e o espírito da Lei de Talião não eram dar a quem julga um poder ilimitado, o poder de ser duro com uns e suave com outros, conforme a conveniência.
Ao contrário: era estabelecer um parâmetro, uma régua e um limite para a Justiça, ajustando a condenação à exata proporção do delito, independente de quem o praticou.
A rigorosa reciprocidade entre o delito e a pena, que fundamenta a Lei de Talião, está no cerne da própria ideia de justiça materializada nos primeiros códigos legais, formulados há mais de 4 mil anos. O conjunto de regras jurídicas criado pelo rei de Ur, Ur-Nammu, data de 2100 a.C. e já estabelece: “Se um homem comete assassinato, esse homem deve ser morto”.
Ainda que a pena de morte pareça hoje inaceitável para muita gente, o importante no código de Ur-Nammu é estabelecer um limite para a punição, desautorizando qualquer excesso por parte de quem julga.
Já há 4 mil anos se entendeu que a punição não pode ser maior que o delito: por rigorosa que fosse, uma sentença não podia extrapolar o crime e ser estendida, por exemplo, ao confisco de propriedades pelo Estado, ou à perseguição de parentes e amigos do criminoso, nem se basear em interpretações políticas.
Esse princípio aparece de forma mais explícita no Código de Hamurábi, imperador da Babilônia entre 1792 e 1750 a.C., que estabelece como objetivo “pôr em prática a regra da retidão na Terra, de modo que o forte não prejudique o fraco” – ou seja, coibir o abuso de poder, de maneira a encerrar a prática de rixas e vinganças que ameaçava a própria sobrevivência da sociedade.
Confirme a Wikipedia: “Os sistemas da lei de talião serviram a um propósito crítico no desenvolvimento dos sistemas sociais – o estabelecimento de um instituto cujo propósito era decretar a retaliação e garantir que essa fosse a única punição. Esta doutrina era o Estado em uma de suas formas mais antigas”.
É justamente uma das 282 leis do Código de Hamurábi que determina: “Se um homem tirar o olho de outro homem, seu olho deve ser tirado”.
A mesma ideia aparece nos livros do Levítico (“Quem ferir mortalmente um homem será condenado à morte. Quem ferir mortalmente um animal devolverá um semelhante: vida por vida”) e do Deuteronômio (“Teus olhos não o pouparão: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”.), que integram a Torá hebraica e o Antigo Testamento. Aparece, também, no Direito romano, quando é batizada como Lex Talionis, Lei de Talião.
Bem mais tarde, o Alcorão, livro sagrado do Islã, também incorpora o conceito, ainda que itindo a possibilidade do perdão: “E nós lhes prescrevemos que se pague vida por vida, olho por olho, nariz por nariz, orelha por orelha, dente por dente, e, também, para as feridas, o talião. Mas quem perdoar, seu perdão será sua expiação.”
O sentido da Lei de Talião, portanto, nunca foi o incentivo à vingança exemplar e pedagógica, mas, justamente, ajustar a retaliação/punição ao delito cometido, limitando a compensação ao valor da perda. Algo bem diferente do que se testemunha hoje no Brasil – que, neste quesito, parece estar mais atrasado que as antigas civilizações.
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