Se for assim, não restará ninguém para contar a História (mas talvez o objetivo seja este mesmo). Porque, basicamente, todas as pessoas que viveram no Brasil do século 17 conviveram com escravidão, que era um fator estruturante da economia e da sociedade da época: seriam todos perversos, fascistas e genocidas de extrema-direita?

O cronocentrismo, a ignorância deliberada de toda e qualquer contextualização para se implementar uma agenda, é apenas uma perversão conveniente da História.

Imagem do corpo da matériaPadre Antônio Viera, cancelado pela Nova Inquisição

Cito a seguir um dos autores que já se debruçaram sobre o tema: o historiador português João Pedro Marques. Resenhando “Cada um é da cor do seu coração – Negros, ameríndios e a questão da escravatura em Vieira”, ele escreveu, em 2018:

"A primeira coisa que é preciso perceber é que no século 18, com raríssimas excepções, as pessoas em toda a parte do mundo, até mesmo em África e entre os africanos, aceitavam a escravatura. Diz-se que os próprios escravos negros a rejeitavam, o que é uma ideia muito romântica e aparentemente muito lógica, mas que tem o grande inconveniente de ser falsa. Muitos dos escravos que se revoltavam e fugiam, e que conseguiam, assim, atingir a liberdade, escravizavam outras pessoas, ou seja, tornavam-se, por sua vez, senhores ou traficantes de escravos.

“Foi assim no famoso quilombo de Palmares, foi assim entre os escravos revoltosos da região de Baçorá, no atual Iraque, foi, inclusive, assim, com alguns dos líderes da grande revolta de São Domingos (futuro Haiti) e em muitos outros casos historicamente documentados. Antes da última metade do século 18 não havia abolicionistas nem na Europa nem em nenhuma outra parte do mundo. Apenas algumas, poucas, vozes que criticavam certas modalidades do tráfico de pessoas ou certas perversões e crueldades na relação dos senhores com os seus escravos.”

“Vieira arrepiava-se com a dureza e iniquidade do tratamento infligido aos escravos. Entristecia-se com a visão dos navios que chegavam de África carregados de centenas de negros. Revoltava-se com o contraste entre a humildade do pobre escravo africano e a soberba e opulência do seu senhor. Mas esses sentimentos eram amortecidos pela convicção profunda de que essa situação, aparentemente iníqua, obedecia a um propósito divino oculto.

“Vieira era um homem do Seiscentos, um homem da Igreja, que vivia num mundo regido pela Vontade de Deus. Acreditava que todas as coisas tinham uma razão de ser no âmbito dessa Vontade. Acreditava firme e sinceramente na dualidade corpo/alma, e achava, à maneira de Sêneca e de outros filósofos (que Vieira explicitamente cita), que o que interessava verdadeiramente era a libertação e a salvação das almas, não a dos corpos.

“A importância do estado de escravidão era, por isso, muito relativa. Vieira não tinha a nossa noção moderna de escravatura nem, acrescente-se, a nossa noção de liberdade. Essas noções estão inter-relacionadas, não são imutáveis e têm, como todas as outras coisas, uma história. Seria o padre Vieira um defensor da escravatura dos africanos? A resposta, depois do que ficou exposto, é claramente não. Aceitar ou tolerar não são sinônimos de defender ou promover.

“Imagine-se a viver em 1650 no Brasil, em São Salvador. Suponha que é um homem do clero e que, da janela do seu quarto ou da porta da sua igreja, vê chegar regularmente os navios que vêm da costa de África cheios de escravos negros. Não se esqueça de que vive em 1650, um tempo em que, na esteira de Santo Agostinho e de outros Padres da Igreja, ainda se vê a escravidão como o resultado de guerra justa, uma consequência do pecado e uma forma de civilizar os pagãos. Acha, sinceramente, que teria uma visão muito diferente da do padre Vieira?

“Eu faço esta pergunta às pessoas razoáveis, não aos que projetam no ado as suas mal informadas e mal alinhavadas ideias e acusam Vieira e outros antigos portugueses de mil erros e crueldades. Essas pessoas têm a prosápia dos que estão convencidos de que, se tivessem vivido no século 18, teriam certamente acabado com o tráfico negreiro e com todas as injustiças do mundo. É fácil a estes cavaleiros e cavaleiras ‘do bem’ falar assim, numa altura em que o problema já está, felizmente, resolvido. Se tivessem vivido no tempo de Vieira a sua prosápia fiaria mais fino.

“Isso mostra bem a estupidez de aplicar, de forma mecânica, esquemas mentais e grelhas de questionário do século 21 a homens e situações do século 17 Estamos perante um mundo muito diferente do nosso, e a tradução de um para o outro não é instantânea nem simples nem linear. Quem não entender essa verdade elementar não entenderá o ado nem o que condicionava e motivava as pessoas que nele viveram. Sabe-se que há muita gente que não está interessada em compreender coisíssima nenhuma, apenas em condenar e apedrejar.”

O projeto de lei que resultará na remoção do busto de Vieira foi aprovado em outubro. Segundo a reportagem da Folha de S.Paulo, o prefeito Eduardo Paes se omitiu: não sancionou nem vetou o texto enviado pela Câmara. Por conta disso, a lei foi promulgada após expirar o prazo de 15 dias úteis previsto para decisão do chefe do Executivo municipal.

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