Se o governo decidir contra a exploração de ouro, seja por garimpeiros, seja por mineradoras, a primeira providência é extrusar os garimpeiros e manter um forte esquema de vigilância, maior do que havia antes de 2009, quando mudaram a estrutura da FUNAI, extinguiram os postos indígenas de dentro das áreas indígenas e desmontaram os postos de vigilância que protegiam os pontos por onde havia maior entrada de garimpeiros.
Desde já, deveriam criar um programa de assistência exclusivo para os Yanomami, com vigência a médio prazo – digamos, 20 anos. Eles requerem uma atenção especial devido ao seu tamanho populacional e ao espaçamento das aldeias por um vasto território. Esse programa deve contar com a participação dos índios Yanomami e das agências estatais e privadas que os assistem, inclusive as Forças Armadas – sob a supervisão da Funai, ou de um órgão superior.
Esta é uma engenharia antropológica difícil de conseguir, vai testar a sabedoria do indigenismo brasileiro e as competências de todos. Não é só pela boa vontade que se conseguirá melhorar a situação dos Yanomami.
- Falando sobre a questão dos Yanomami, no sábado ado o ex-presidente Bolsonaro insinuou que existem interesses internacionais nas riquezas minerais dos territórios demarcados como reservas indígenas: “Se não tivesse riqueza lá (em Roraima), não seria demarcada como terra indígena. Os interesses são muitos. (Os roraimenses) são o povo mais pobre no solo mais rico do mundo”. Como você analisa a declaração de Bolsonaro? Ele tem alguma razão? Ou está totalmente equivocado?
MÉRCIO: Há evidentemente muito interesse nas terras indígenas por parte de todo mundo, inclusive interesses econômicos e geopolíticos internacionais. Mas não acho que a Terra Indígena Yanomami tenha sido demarcada e homologada por essa razão. Foi demarcada por pressão política e cultural da sociedade brasileira, como outras terras também o foram.
Isto não quer dizer que tenha diminuído o interesse econômico e geopolítico sobre essa terra indígena. Mas o fato de ter sido demarcada oficialmente a deixa mais bem protegida, e não será fácil desconstruí-la. Se suas riquezas minerais e madeireiras vierem a ser exploradas, acredito que dever ser por algum meio mais racional do que estes que temos visto até agora.
Quanto à ideia de que um dia a ONU venha a propor o desmembramento dessa terra e da parte correspondente que há na Venezuela para criar um protetorado, acho francamente irreal. No entanto, devemos estar atentos. Da História ninguém pode duvidar nada, tampouco adivinhar o que poderá acontecer. O Brasil deve manter sua força política e moral em relação a essas ideias ou pretensões.
“No aspecto da soberania, a esquerda e a direita pensam igual. Há um certo sentimento de paranoia. Acho que estão equivocados por quererem projetar suas visões da História sobre a realidade brasileira e a atualidade”
- Uma parte da esquerda já vem demonstrando preocupação com o risco de perda de soberania na Amazônia – como o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo, que associa a questão indígena a este tema. Como você avalia as teses de Rebelo e de outros representantes da esquerda preocupada com a perda de soberania na região?
MÉRCIO: Nesse aspecto a esquerda e a direita pensam igual. Há aqui um certo sentimento de paranoia. Acho que estão equivocados por quererem projetar suas visões da História sobre a realidade brasileira e a atualidade. Ao menos essa visão não devia travar o que é urgente e necessário, isto é, proteger e respeitar as terras indígenas e promover a autonomia cultural e econômica dos povos indígenas.
- Ainda em relação a esse tema, que avaliação você faz da atuação de ONGs nacionais e estrangeiras na região? Que benefícios concretos elas trouxeram aos indígenas? E por que não se manifestaram mais cedo sobre a crise humanitária dos Yanomami?
MÉRCIO: Como um antropólogo de cepa rondoniana, tenho minhas desconfianças. Gostaria que a FUNAI prevalecesse na atuação indigenista sobre essas ONGs. Mas elas existem, foram criadas em um tempo de fragilidade do órgão indigenista e fincaram um pé grande em muitas terras indígenas. Creio que foram importantes no processo de demarcação de algumas terras indígenas e, em parte muito menor, na questão da saúde.
Entretanto, há um elemento de amadorismo nesse indigenismo onguista nacional e internacional. Em geral, respeitando o sacrifício de alguns, seu senso de responsabilidade diminui quando a situação fica difícil. Acho que, nesse momento, deveriam ser chamadas para participar na renovação do indigenismo brasileiro e saberem qual o espaço que podem ter. O mesmo se deve dizer sobre as missões cristãs. Mas, para isso acontecer, a Funai tem que ganhar moral diante das populações indígenas e da sociedade brasileira em geral.
A respeito das missões cristãs, o que você achou da portaria que vedou o o de religiosos e o uso de imagens com referências a religião, por pessoas que entrem nas aldeias?
MÉRCIO: Fiquei surpreso, porque há muitas missões em terras indígenas, inclusive concorrentes entre si e inclusive no estado de Roraima. Não sei se há alguma delas que essa proibição almeja atingir. Creio que as missões que existem no Brasil têm sido menos doutrinaristas do que aquelas da Venezuela.
Em muitos casos as missões são mais participativas e responsáveis do que as ONGs. De todo modo, acho que os Yanomami não precisam de doutrinação cristã, seja de qual procedência for. Se um dia quiserem, aí deve ser por sua própria decisão.
- Como você enxerga o crescente interesse de fundos privados estrangeiros na Amazônia, como o BlackRock, que vem sendo noticiado de forma até ingênua, como se esses fundos fossem movidos apenas pela bondade?
MÉRCIO: Encaro com um pé atrás. Por certo há algo mais do que o interesse econômico. O dinheiro incita o poder. Se for só o econômico, dá para encarar. Já como enfrentar o que pode estar por trás, creio que o Brasil como um todo está ficando cada vez mais defasado em sua preservação da soberania, e isso não só no aspecto econômico.
Gritar, alardear, espernear não são atitudes sérias. É preciso ter capacidade de saber o que está acontecendo, e está para acontecer, no mundo, e nas grandes mudanças que estão surgindo devido à grande concentração de capital e conhecimento em algumas poucas empresas mundiais.
É importante ter uma atitude crítica a respeito de algumas instituições internacionais e alguns mecenas e benfeitores de mão aberta. Ou o Brasil dá um salto na educação e ciência superior ou vai se desmilinguir nos próximos anos. Não quero ver o Brasil como um meninão balofo dançando carnaval o tempo todo.
- Como lidar com a questão do garimpo? Proibir? Regulamentar? As grandes empresas de mineração, que agem legalmente, não teriam um impacto maior no ambiente que os garimpeiros ilegais? É o que sugere um relatório pulicado 1 ano atrás pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ...
MÉRCIO: Não sei o que o presente governo pretende fazer em relação à mineração e a garimpagem em terras indígenas. Já surgiram várias propostas de regulamentar a mineração em terras indígenas, inclusive, a última se deu no segundo mandato do presidente Lula.
O Projeto de Lei foi detonado no Congresso, evidentemente por interesses conflitantes de políticos, mas também por pressão de índios, ONGs e amigos dos índios. É algo para ser discutido com seriedade e responsabilidade política. Acho que eventualmente vai ser regulamentado, mas não sei como, nem quando. Só torço para que não seja do modo como acontece agora.
- Em todo esse debate, não está faltando ouvir com mais atenção o que os próprios indígenas têm a dizer? Quais são as demandas das lideranças indígenas? Elas têm opiniões divergentes entre si?
MÉRCIO: Bem, nesse aspecto o governo já veio com a resposta. Criou um ministério exclusivo para os povos indígenas, nomeou duas lideranças indígenas para encabeçar o ministério e a Funai, e está nomeando muitos índios em quase todos os cargos de confiança e poder. Torço para que dê certo, ainda que com alguns atropelos, como eventualmente haverá.
Entretanto, para funcionar bem, o governo tem que conversar com os índios que estão buscando alternativas econômicas com o uso de suas terras e recursos naturais, em geral em consórcio com empresas privadas. Eles não vão voltar atrás, e acho que muitos outros povos indígenas gostariam de ter autonomia econômica também.
As outras duas grandes questões – saúde e educação – devem ser orientadas por pessoas com conhecimento e experiência – e, definitivamente, deve-se evitar a politização e o aparelhamento das instâncias de poder e atuação.