Quatro dias antes de sua execução – em um operação complexa, que jamais poderia ter sido executada sem a participação de profissionais ou do Estado ou de Estados (como me descreveu um oficial argentino) – Nisman apresentou à Justiça de seu país uma denúncia contra a então presidente Cristina Kirchner. O procurador acusou-a de fazer parte de uma conspiração que tinha por objetivo encobrir as responsabilidades do Irã no atentado terrorista que resultou na morte de 85 pessoas e deixou mais de 300 feridos.

Segundo as provas reunidas por ele, Buenos Aires e Teerã formalizaram um acordo de cooperação para investigar a explosão da entidade como fachada para livrar a cara do regime dos aiatolás e de seus agentes neste que fora o maior atentado terrorista islâmico nas Américas, até a carnificina de 11 de setembro de 2001.

Mesmo contra as evidências, as autoridades argentinas bancaram a tese de que Nisman havia se matado, até o fim do governo de Cristina. Somente na gestão de Maurício Macri, o caso foi federalizado e as novas perícias constataram o óbvio. E a denúncia de Nisman que tinha sido descaradamente engavetada foi reaberta e resultou no pedido de prisão de todos os envolvidos. Inclusive o da ex-presidente. Cristina só não foi parar na cadeia porque, assim como no Brasil, a imunidade parlamentar salva! Recentemente empossada como vice-presidente de seu país, ela ocupava uma cadeira no Senado, quando das denúncias.

O que levou Nisman a ser assassinado? Evidentemente, ele é a 86º vítima da Amia. Morreu em decorrência de suas investigações. Mas por que demorou tanto para morrer? Ao longo de uma década de investigações, ele infernizou a vida do regime iraniano. Conseguiu colocar cinco autoridades do país na lista dos mais procurados pela Interpol, entre eles um presidente. Demonstrou que apesar das negativas, Irã e seu braço armado no exterior, o Hezbollah foram os responsáveis pelo atentado.

A minha hipótese não interessa, mas não custa compartilhar. Nisman morreu não por ter dado um o a mais em direção aos responsáveis pelos atentados. Ele foi assassinado por ter entendido que as ruínas e dezenas de corpos esfacelados naquela manhã de 18 de julho de 1994 não foram o ponto final das ações do Irã em seu país e possivelmente o governo que se instalou por lá em 2003 e só viria a ser substituído depois da morte dele estaria em conluio com os planos nucleares de Teerã.

Nas semanas seguintes ao seu assassinato, eu me reuni com fontes nos Estados Unidos e na Argentina que desenham um quadro assombroso que era de conhecimento do procurador. Os argentinos haviam sofrido assédio do Irã e da Venezuela para traficar segredos nucleares violando as sanções dos Estados Unidos. A publicação dessa informação levou-me a ser intimado pela Justiça Argentina para testemunhar no mesmo processo que decretou a prisão de Cristina. Isso foi o que eu disse ao procurador federal que me interrogou: Nisman voltou os olhos para Argentina.

Assim como a causa que consumiu a vida de Nisman, o seu assassinato muito provavelmente ficará sem solução. E sendo 100% irresponsável, pois o que direi aqui é a mais pura suposição, o Irã jamais assumirá o seu papel neste crime, como nunca assumiu em todas as outras operações nas quais esteve envolvido. Este é o estilo de matar que o falecido Qasem Soleimani impôs aos seus comandados e aos seus proxies ao redor do globo. Uma tática de dissimulação que os diverte e os protege, enquanto cumprem seus objetivos estratégicos fora do Irã.

Um ex-aluno do clérigo Mohsen Rabbani, denunciado pela Justiça argentina como o principal operador local do atentado contra a Amia, que o professor-terrorista é reverenciado em seu país pelo atentado que cometeu. Rabbani e seus chefes de turbante sempre negaram a ação. Aliás, chegam ao disparate de dizer que os judeus foram vítimas do Estado de Israel que teria montado o atentado para culpar o Irã.

Para entender o "método iraniano", vale recordar o plano de assassinato do então embaixador da Arábia Saudita em Washington, Adel al-Jubeir. Em 2011, as autoridades americanas frustram o atentado graças a um agente infiltrado da DEA (a agência antidrogas dos Estados Unidos) no cartel mexicano Los Zetas. O general Soleimani havia contratado os serviços dos mexicanos para estacionar um carro bomba em frente a um badalado restaurante da capital americana, quando Al-Jubeir estivesse almoçando em seu interior.

Até as pedras de Meca saberiam que o crime seria obra do Irã, mas como diplomatas de diversos países também seriam alvo e o terrorista seria um traficante, os aiatolás poderiam festejar quietinhos. Sem que a fatura alguma lhe fosse apresentada. Mas como o plano e as conexões foram descobertas. Os Estados Unidos não só expam o envolvimento de Teerã como aplicaram sanções aos Quds e ao seu comandante Soleimani.

No final do ano, o Irã planejava fazer o mesmo. Usou seus laranjas para atacar a embaixada americana. Montaram um cenário de caos e violência que, por pouco, não alcançou as dimensões trágicas de 2012 quando o consulado dos Estados Unidos foi invadido em Benghazi e resultou na morte do embaixador na Líbia e outros três americanos. Soleimani foi ao Iraque nos dias seguintes, apostando na impunidade que sempre o protegeu. Pela primeira vez deu errado para os aiatolás.

No dia 29 de dezembro, quando ainda Soleimani mandava e desmandava nas operações militares do regime dos aiatolás no exterior, Alí Qomi – genro e braço direito de Mohsen Rabbani (o clérigo que comandou localmente o atentado contra a Amia, em 1994), subiu uma mensagem no Youtube. Qomi é um importante operador do Irã na América Latina, sendo responsável por enviar a mensagem "cultural e religiosa" para os grupos vinculados ao seu sogro que vive escondido no Irã.

No video, Qomi protesta contra os humoristas do Porta dos Fundos e a empresa de streaming Netflix por causa do polêmico e patético "A primeira tentação de Cristo". No canal, onde divulga suas aulas, sermões e mensagens para comunidade islâmica na América Latina, o clérigo lamentou a falta de coragem dos cristãos em defender Jesus. Em alguns momentos ressalta que a violência não deve ser a resposta. Em outro, entretanto, cita a fatwa emitida pelo aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989) contra o escritor indiano Salman Rushdie, autor do livro "Os versos satânicos", que enfureceu o regime de Teerã. A sentença, ainda vigente, pede o assassinato do autor por blasfemar contra o livro sagrado do Islã, o Corão.

Ser genro de um terrorista não faz de Qomi automaticamente um. Mas o círculo de relações dele está repleto do que há de mais radical na política e religião iranianas. Por sinal, elementos indissociáveis naquele país. Bem ao estilo iraniano, o clérigo dá mil e uma piruetas para enviar a sua mensagem sem se comprometer. Parece apostar em um maluco tupiniquim que possa lhes fazer o favor de vingar a imagem de Isa ibn Maryam (Jesus, filho de Maria), como os muçulmanos se referem ao profeta que pavimentou os caminhos de Mohammad, o fundador da religião deles, e também abrirá as portas do paraíso dando início ao Juízo Final. Soleimani morreu, mas o Irã segue exatamente igual.

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