A reescrita da história da Lava Jato criou um Brasil onde há corrupção, mas não existem corruptores e corruptos. Na história que está prevalecendo, não são os criminosos e seus crimes que ancoraram o Brasil no atraso, impedindo o país de aproveitar alguns dos momentos mais auspiciosos de crescimento global. Para a narrativa que substitui os fatos, o que quase quebrou o Brasil foi o combate à corrupção. Uma lógica segundo a qual quem mata o paciente de câncer é a quimioterapia, não a patologia.

A revista Time desta semana deu palanque para o ex-presidente Lula colocar um pouco mais de tinta no conto sobre sua versão esquizofrênica e oportunista. Além, obviamente, de se colocar no altar da política, Lula mostrou que, quando o deixam falar, suas idiossincrasias são tão portentosas que não há caneta amiga capaz de neutralizá-las.

Sabe aquele sujeito que justifica assédio sexual ou até mesmo estupro dizendo “mas quem mandou ela se vestir assim?”. Então, do alto do altar que a Time montou para Lula, ele não se avexou em dizer que ninguém faz guerra sozinho e que a Ucrânia é tão responsável quanto Putin. Mais especificamente, atribuiu a Volodymyr Zelenskyy a culpa pelo conflito.

A invasão russa na Ucrânia, por sinal, tem servido de pretexto para uma série de barbaridades: Hitler era judeu. Putin é um conservador. O Ocidente está infestado de autocracias globalistas querendo dominar o Brasil. Os judeus são nazistas. A lista anterior jorrou da fonte de propaganda e desinformação russa e por mais que há quem tente explicar – como aqui nesta coluna –, não há quem resolva.

Não faz muito tempo, os bolsonaristas se orgulhavam de exibir a bandeira da Ucrânia (que criminalizou o comunismo), a dos Estados Unidos e a de Israel como símbolos de suas convicções, que iam na linha “nossa bandeira jamais será vermelha” e “o Brasil não vai ser uma Venezuela”. As coisas mudaram tanto desde o início da guerra e da enxurrada de propaganda que absorveram que não seria absurdo se nas próximas eatas aparecessem bandeiras da Rússia e até mesmo do Irã como símbolos da resistência antiglobalista.

Um giro pelas redes sociais dá pistas disso. A animosidade aos Estados Unidos parece ganhar corpo como resultado de uma reação irracional ao fim do governo Trump e ao desastre que são as relações entre Brasil e Estados Unidos na era Biden. Há absurdos como a afirmação de que o regime dos aiatolás é pacífico e que o Brasil mais cedo ou mais tarde precisa estar com eles para se proteger da influência maligna dos Estados Unidos.

Há uma enxurrada de sandices, por exemplo, dizendo que o Brasil é o próximo alvo da invasão dos Estados Unidos e da OTAN. Gente que se leva a sério, tem centenas de milhares de seguidores, reproduzindo para a base bolsonarista e para a base lulista a mesmíssima lorota. A prova seria a visita ao Brasil da subsecretária de Estado Victoria Nuland, para as reuniões de revisão da agenda bilateral Brasil-EUA, ocorrida no mês ado. Para os russos, Nuland é uma espécie de Thanos. Por onde ela a, não resta governo de pé. A razão da campanha de difamação se deve ao fato de que ela era a subsecretária para a Europa quando, em 2014, os ucranianos colocaram para fora o então presidente Viktor Yanukovich – um boneco de ventríloquo de Vladimir Putin.

Repetindo sem trocar uma vírgula sequer a mensagem ditada pela propaganda russa, esquerda e direita papagaiavam a mesma tese de que Nuland veio ao Brasil ameaçar o presidente Jair Bolsonaro e interferir nas eleições. A maluquice ficou ainda mais robusta com uma matéria da Reuters, que cita fontes em off que teriam garantido que no ano ado, durante sua agem pelo Brasil, o diretor da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, teria mandado um recado para que Bolsonaro não tentasse intervir nas eleições.

O governo brasileiro nega. O americano não fala sobre o assunto. Mas o negócio ganhou corpo e é tão esquisito que parece fazer parte do mesmo processo de corrosão da relação da direita brasileira com o Ocidente e que está empurrando o Brasil para um eixo formado por uma turma barra pesada.

Até os esquilos que saracoteiam pelos jardins da Casa Branca sabem que Biden não vai com a cara de Bolsonaro. O sentimento é recíproco. Também não é demais pensar que os democratas têm preferência por Lula, mesmo sabendo que ele não é a melhor opção para relações saudáveis entre os dois países e a região.

Mas acho que vale um adendo. Em vários aspectos nos Estados Unidos, e principalmente na política externa americana, não é possível falar que há “um governo Biden”. As rodas estão sendo giradas por grupos de interesse. E não necessariamente na mesma direção. O que se vê é um governo de agendas. Quem tem poder move suas peças conforme os interesses de cada um dos escaninhos da istração. No meio da bagunça, não falta quem aproveite para tirar vantagem.

E assim, a história vai sendo reescrita.

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