Sim, ninguém negava as benesses dos antibióticos, das vacinas ou dos transplantes. O aumento da esperança de vida era, e é, a medida da nossa gratidão. Mas também ninguém negava que a ciência arrasara Hiroshima e Nagasaki; ou que fora usada nas câmaras de gás de Auschwitz ou Treblinka.
Nossos anteados teriam itido a possibilidade de um vazamento do coronavírus sem drama. Porque entendiam que os cientistas que manipulam esses vírus para tentar ajudar a espécie humana são os mesmos que, por erro ou coisa pior, podem devastar a espécie humana. É também por isso que celebro o acontecimento literário dos últimos anos. Falo do livro When We Cease to Understand the World, do escritor chileno Benjamin Labatut.
Saberemos logo se Labatut recebe o International Booker Prize, como merece. Mas o seu livro, de um hibridismo revolucionário na literatura contemporânea, é uma meditação brilhante sobre essa monstruosidade da ciência. Monstruosidade em dois sentidos.
No século 20 ninguém negava as benesses dos antibióticos, das vacinas ou dos transplantes. Mas também ninguém negava que a ciência arrasara Hiroshima e Nagasaki; ou que fora usada nas câmaras de gás de Auschwitz ou Treblinka
Por um lado, ao transformar em arte a velha máxima de Nietzsche de que, quando olhamos demoradamente para o abismo, o abismo também olha para nós. As páginas sobre o grande matemático Alexander Grothendieck, que abandonou a ciência e se entregou à reclusão por vislumbrar nos seus cálculos uma capacidade infinitamente destrutiva, é um prodígio narrativo. O mesmo vale para os capítulos dedicados aos físicos Schrödinger e Heisenberg: a forma como a mecânica quântica os levou aos confins da racionalidade, para quase os despedaçar, é o oposto da versão Walt Disney que hoje reina na maioria da divulgação científica.
Por outro lado, a monstruosidade está plasmada no destino de Fritz Haber. O químico alemão salvou milhões de seres humanos da fome ao inventar os primeiros fertilizantes artificiais. O mesmo Haber foi declarado criminoso de guerra pela França e pela Inglaterra por ter desenvolvido os gases que os alemães usaram na Primeira Guerra Mundial.
Benjamin Labatut, como nossos avós, tem “imaginação do desastre”: a capacidade rara de vislumbrar no engenho humano o que existe de grandioso e horripilante. Nós, infantis e amnésicos, já não conseguimos imaginar o lado sombrio de nada. Essa é a razão por que somos mais perigosos que nunca.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos