Um livro recente, do historiador Ian Johnson, explica os detalhes. Intitula-se, sugestivamente, Faustian Bargain: The Soviet-German Partnership and the Origins of the Second World War – em português, “barganha faustiana: a parceria germano-soviética e as origens da Segunda Guerra Mundial”.
Mas regresso à beleza do ideal. Será isso que salva o comunismo na comparação com o nazismo? É provável. Não serei original a sublinhar a diferença retórica entre os dois totalitarismos (Kolakowski chegou lá primeiro). Mas enquanto o comunismo, no uso e abuso de termos como “igualdade” e “justiça”, ainda se inscreve numa linguagem reconhecidamente judaico-cristã, o nazismo e a sua exaltação neopagã da força e da brutalidade representam um corte com essa melodia – uma “transmutação de valores”, como diria o filósofo. Essa é a razão pela qual a linguagem do nazismo é repulsiva e indefensável – e a linguagem comunista, independentemente das consequências, é tão suave aos nossos ouvidos.
Se dúvidas houvesse sobre essa suavidade, bastaria olhar para Lyuda, a personagem central de Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta, o grande filme que eu nunca pensei que Andrei Konchalovsky seria capaz de fazer. Mas fez. Superficialmente, Caros Camaradas retoma um dos tabus que a União Soviética de Nikita Kruschev tentou esconder: o massacre de dezenas de trabalhadores que se revoltaram em Novocherkassk, corria 1962.
E se revoltaram por quê? Pelos motivos mais compreensíveis: comida. O preço da comida. Como exigir mais trabalho na fábrica quando os salários risíveis não permitiam comprar os bens mais básicos? Eis a prova de que o comunismo não precisa de embargos americanos para gerar a miséria do costume.
Lyuda não sofre com esse mal. Ela, funcionária do partido, tem certos privilégios. Como, por exemplo, não agonizar nas filas para comprar a janta. Perante esse estatuto, não ira que Lyuda seja uma implacável defensora do regime. Pelo menos até o momento em que as autoridades soviéticas começam a disparar sobre os manifestantes que exigem melhores condições de vida e a fazê-los desaparecer.
Os crentes no comunismo têm uma infinita capacidade de autoengano
Entre os desaparecidos está a sua filha, Svetka. Lyuda tentará procurá-la nos hospitais, depois na morgue, e finalmente nas sepulturas anônimas dos cemitérios. O filme de Konchalovsky é irável na recriação dessa cultura de violência e mendacidade que levava um regime a matar o seu povo.
Mas o interesse maior está em Lyuda: uma crente que vira descrente, sem renegar ao ideal. Pelo contrário: o problema da União Soviética, segundo Lyuda, é já não ter Stalin ao leme. É uma conclusão duplamente irônica – e trágica. Primeiro, porque foi Kruschev quem, em célebre discurso de 1956, denunciou os crimes de Stálin. Mas sobretudo porque Lyuda, na sua fantasia reacionária, encarna o que existe de inesgotável na alma do crente: uma infinita capacidade para o autoengano, desde que a retórica do ideal nunca seja contaminada pela evidência da realidade.