O perfil demográfico desses evangélicos torna seu comportamento realmente escandaloso. Um grupo “majoritariamente feminino, composto por não brancos, pobres, com escolaridade baixa e que moram nas periferias dos grandes centros urbanos”, votando consistentemente contra os seus interesses! Deveriam ser, claro, identitaristas, como qualquer jovem e esclarecido estudante da USP, Unicamp, Uerj ou UFMG.
Pura ilusão. Araújo enfileira uma notável coleção de evidências de que a rejeição pentecostal à esquerda e ao PT, em particular, é sólida, generalizada e antiga, tão automática quanto uma alergia e impermeável aos benefícios sociais promovidos pela classe política. A conclusão, que não chega a ser uma novidade para evangélicos observadores, mas que parece surpreender – e frustrar – os vieses típicos da classe sociológica brasileira, é que a religião tem uma força causal distinta e independente dos fatores políticos e econômicos.
Mais: a ascensão da nova direita não seria, como foi amplamente alardeado por intelectuais, militantes e políticos de esquerda, a obra de uma classe média branca, conservadora e retrógrada, mas uma composição que contou com o apoio crucial do proletariado evangélico, o setor mais negro, feminino e pobre do eleitorado nacional. Diz Araújo:
“Não está claro ainda se a rejeição dos pentecostais ao PT se revela nas eleições para outros cargos eletivos. Também não quer dizer que a antipatia à esquerda no Brasil esteja restrita ao grupo dos evangélicos pentecostais: esse sentimento de oposição irrestrita possui lastro em outros segmentos da sociedade brasileira e se correlaciona com formas diferentes de conservadorismo. Mas tratar o fenômeno como se fosse às elites brancas com alto nível de instrução simplifica algo complexo em sua essência. Como a maioria dos pentecostais reside na periferia dos grandes centros brasileiros, ocupa o mercado de trabalho informal e recebe até dois salários mínimos, quem rejeita a esquerda nas urnas é menos branco, rico e escolarizado do que o sugerido anteriormente. Pentecostais são mais antipetistas do que qualquer madame.”
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A origem dessas pautas morais não seria alguma manipulação por elites conservadoras, mas a própria religiosidade pentecostal. Não seria, muito menos, o resultado de uma conspiração de pastores ricos e elitizados – uma ficção comum, mas carente de qualquer fundamento. A maior parte do crescimento evangélico não veio, ao contrário do que se pensava, de grandes pastores influenciadores ou de grandes grupos midiáticos neopentecostais, mas da abertura de pequenas igrejas pentecostais nos grandes centros urbanos, como o próprio Araújo tratou de explicar.
Diante disso, restariam à elite política de esquerda apenas três opções, segundo o cientista político: em primeiro lugar, ela poderia enfraquecer a pauta moral e focar em renda, com risco de perder apoio das massas; em segundo lugar, poderia abraçar as pautas morais pentecostais – mas nesse caso “surge o obstáculo de perder apoio entre os eleitores de renda média com maior escolaridade” e entre a militância identitária. E em terceiro lugar, poderia exacerbar a polarização e tentar dividir o campo religioso, combatendo diretamente a visão evangélica. Essa última opção não teria muito futuro, no entanto; segundo Araújo, o Brasil está em acelerada transição religiosa rumo a uma maioria evangélica, tornando uma guerra petista contra o protestantismo uma espécie de suicídio político.
No conjunto, reconheço que Victor Araújo prestou um serviço irável à compreensão do comportamento político evangélico, mas penso que sua análise deixa um flanco aberto: qual é a atitude política dos oponentes do pentecostalismo, o progressismo nacional? Não são apenas os pobres andando distraídos na praça política nacional.
A elite cosmopolita quer cuidar do pobre e, ao mesmo tempo, combater o pentecostal conservador. Não está funcionando nem vai funcionar, evidentemente
Para destacar o meu ponto, chamo a atenção do leitor para a segunda alternativa entre as três propostas no livro: segundo Araújo, apoiar políticas de distribuição de renda juntamente com uma agenda conservadora “desagradaria” o eleitorado de renda média e maior escolaridade, de modo geral. Mas por que esse eleitorado seria “desagradado” se o seu maior interesse reside, supostamente, na promoção de políticas igualitárias e no aumento da mobilidade social? A explicação intelectualmente mais simples é que esse eleitorado não busca exatamente a “justiça social”, mas a hegemonia de sua visão de mundo.
Ou seja: não é só o voto evangélico que está “de joelhos para a moral e os bons costumes”. O voto de esquerda, em geral, e o voto petista, em particular, vem se mostrando incapaz de negociar sua agenda moral com o propósito de garantir políticas redistributivas, pela razão evidente de que o identitarismo político pôs toda a elite política da esquerda de joelhos. Ao fim e ao cabo, estão todos a serviço de suas agendas de costumes, a despeito de toda a conversa fiada sobre combate à pobreza.
A verdade é que a elite cosmopolita quer cuidar do pobre e, ao mesmo tempo, combater o pentecostal conservador. Não está funcionando nem vai funcionar, evidentemente.
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Araújo também observou que os pentecostais vêm se associando a setores conservadores da sociedade brasileira. Esse é um ponto que defendi antes nessa coluna: há uma aliança condicional entre o proletariado cultural evangélico e esses setores conservadores, incluindo evangélicos históricos, a elite conservadora católica e muitos liberais conservadores. E quanto mais a esquerda insiste na revolução dos costumes, mais conservadores e antipetistas os evangélicos se tornam.
Na conclusão de seu trabalho, Araújo levanta um problema genuinamente grave: se os evangélicos seguirem crescendo e se mantendo alérgicos à esquerda, isso resultará em um aumento do clientelismo e uma retração das políticas redistributivas, perpetuando a pobreza e a subalternidade.
Nesse ponto penso que os evangélicos precisam mesmo aperfeiçoar a sua posição e adotar estratégias mais nuançadas. Mesmo assim, eu insistiria: a elite cosmopolita tem a maior responsabilidade nesse estado de coisas, e deveria tomar providências pluralistas: levantar-se de sua idolatria identitária e itir a plena integração da realidade evangélica pentecostal na realidade nacional.