, de 2012), um tour de force na sociologia da afetividade moderna, Eva Illouz assumiu o encargo de fazer com o amor o que Marx fez com as commodities:
“[...] mostrar que ele é moldado e produzido por relações sociais concretas; que o amor circula em um mercado de atores competidores desiguais; e argumentar que algumas pessoas detêm maior capacidade de definir os termos nos quais são amadas do que outras.”
Essa abordagem se segue àquela já assumida em O amor nos tempos do capitalismo: se, por um lado, o capitalismo de consumo se reconstrói a partir da lógica afetiva, por outro lado a afetividade se reestrutura segundo a lógica do capitalismo de consumo, num “entrelaçamento do emocional e do econômico”.
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Assumindo uma postura honestamente moderna-crítica, Illouz louva os valores emancipatórios da modernidade, mas ite que eles trouxeram miséria emocional e a destruição de mundos de vida tradicionais, fazendo da “insegurança ontológica uma característica crônica das vidas modernas”. Essas misérias seriam resultantes da desregulamentação dos mercados afetivos e do matrimônio, criando uma situação de laissez-faire emocional que, embora aumentando a liberdade sexual das mulheres, elevou grandemente o risco e a incerteza do envolvimento afetivo.
Tomando como exemplo a caracterização do amor na obra de Jane Austen, no princípio do século 19, Illouz nota que o amor aparece associado a uma elevada capacidade de discernimento e a um sólido compromisso moral com o progresso da pessoa amada. Comentando a unidade de emoção e moralidade em personagens de obras como Emma (1816) e Persuasão (1818), ela observa:
“Personagens como Knightley, Wentworth e Anne Elliot não se conduzem como se houvesse um conflito entre o seu sentido de dever moral e sua paixão. De fato, não há sombra de tal conflito em seu comportamento, ‘porque a totalidade da personalidade está integrada’. Em outras palavras, é impossível separar o moral do emocional, porque é a dimensão moral que organiza a vida emocional, que assim tem também uma dimensão pública.”
O laissez-faire emocional, embora tenha aumentado a liberdade sexual das mulheres, elevou grandemente o risco e a incerteza do envolvimento afetivo
Essa integração ocorria em razão de certa ecologia e arquitetura da escolha, integrando psicologia individual e relações sociais, que protegia a mulher de ser posta em situação de insegurança social e emocional, forçando o homem a padrões estritos de aproximação, cortejo e compromisso. Illouz contrasta esse regime com o “regime da autenticidade emocional”, segundo o qual os sentimentos são os tijolos do relacionamento e precedem as regras da relação: “No regime da autenticidade, o compromisso não precede, mas se segue de emoções que são sentidas pelo sujeito e se tornam a motivação alternativa do compromisso”. Temos, assim, paradigmas matrimoniais histórica e sociologicamente distinguíveis:
“Uma diferença... caracteriza o casamento baseado em compromisso daquele baseado na autenticidade emocional. O último se baseia na tentativa de reconciliar e harmonizar dois egos emocionais independentes e deve continuamente criar e recriar as condições emocionais e razões que os uniram da primeira vez. O compromisso, em contraste, não irradia do ego emocional individualizado e não busca satisfazer contínuas aspirações emocionais. As emoções são os efeitos dos papéis sociais, e não suas precondições a priori.”
Se as emoções são efeitos de papéis sociais, mesmo que apenas em parte, alterar os papéis sociais pode mudar profundamente as emoções. Recorrendo à analogia ecológica: poderia a mudança social destruir um ecossistema afetivo e moral?
É comum falar-se em mutação institucional, no tocante ao casamento; mas uma explanação mais plausível é a de que se constituiu uma nova espécie de relação; a união romântica, que existia à parte e independentemente do matrimônio, deslocou a relação baseada no compromisso. Esse deslocamento é reconhecido em vários âmbitos, como o do direito, mas sua apreensão não é sempre crítica. Assim, atuando como porta-voz e agente do campo afetivo no âmbito do Direito de Família, a ex-desembargadora Maria Berenice Dias entende o fenômeno como mutação:
“O novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos familiares, que aram a se sustentar no amor e no afeto. Sem afeto não se pode dizer que há família. É o afeto que conjuga. E, assim, o afeto ganhou status de valor jurídico e logo foi elevado à categoria de princípio. Resultado de uma construção histórica em que o discurso psicanalítico é um dos principais responsáveis, vez que o desejo e o amor começaram a ser vistos e considerados como o verdadeiro sustento do laço conjugal e da família.”
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De fato, se trata de uma construção histórica fundada no discurso psicanalítico; o que a ex-desembargadora expressa é exatamente a atividade do campo afetivo, com seu paradigma antropológico e seu hiperbem sentimental, no esforço pela captura, reinterpretação institucional e assimilação sociológica da família tradicional. Assim, como ela dirá logo depois,
“... o princípio da
dignidade humana alça a afetividade à condição de princípio jurídico, pois
prioriza a realização da personalidade dos membros da família em detrimento de
qualquer concepção preestabelecida de entidade familiar. A família só faz
sentido para o Direito a partir do momento em que é veículo funcionalizador à
promoção da dignidade de seus membros, donde o afeto tornou-se valor jurídico
de suma relevância para o Direito das Famílias.
Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitária,
com maior espaço para o afeto e a realização individual.”
Com límpida clareza, temos aqui a declaração de que forças históricas específicas pam em movimento uma transformação paradigmática, com a elevação da concepção moral “eudemonista” – ou a configuração ética expressivo-sentimental – ao status de regra normativa, através do artifício da fusão dessa concepção com o princípio jurídico da dignidade humana, para em seguida instituir um novo modelo de família, que se impõe como regra para todas as famílias.
Toda essa operação, no entanto, torna o direito um legitimador da dominação do capitalismo de hiperconsumo sobre as estruturas familiares. Afinal, ele está na origem dessas distorções, como nota Lipovetsky:
“A dinâmica do consumo-mundo não se detém aí. São todas as grandes instituições sociais que se veem reformatadas, ‘revistas e corrigidas’ pelo turboconsumismo. O casal? Ele se desinstitucionaliza e se privatiza, tornando-se mais contratual, mais instável, cada um se pretendendo autônomo e procurando preservar sua disponibilidade num compromisso pensado como rescindível. Baixa do número de casamentos, aumento das uniões livres, progressão do divórcio, precariedade dos laços: a família já não escapa inteiramente às estratégias temporárias, individualizadas, contratualizadas do indivíduo-consumidor.”
A despeito das esperanças de Maria Berenice Dias e dos lamentos de Gilles Lipovetsky, no entanto, o mero fato de fenômenos sociais receberem o mesmo nome não esclarece o quanto são qualitativamente aproximados. E nenhum artifício jurídico pode produzir ou consolidar uma metamorfose radical em instituições sociais.
Constituiu-se uma nova espécie de relação; a união romântica, que existia à parte e independentemente do matrimônio, deslocou a relação baseada no compromisso
O que temos, mais provavelmente, não é uma mutação de facto na família, mas a coexistência assimétrica de dois tipos de relação distintos embora aparentados, um em crise e outro em ascensão. A relação “pura”, como a descreve Anthony Giddens, enquanto lógica intrínseca ao modelo eudemonista de família, seria na realidade um novo arranjo afetivo decorrente da lógica do mercado. Temos, então, um erro de hermenêutica social; uma ontologia social falha lê erroneamente a emergência de um novo sistema de relações como se fora a metamorfose da família e, em seguida, trata inadequadamente a família, em prejuízo desta, segundo a lógica desse outro sistema. E com isso a natureza da inegável crise da família é obscurecida. Não se trata de reformatação orgânica, mas relação predatória.
Sobre a lógica dessas novas relações, o texto de Illouz é iluminador:
“O que chamamos de ‘triunfo’ do amor romântico nas relações entre os sexos consistiu primeiro e acima de tudo no desincruste das escolhas românticas individuais do tecido moral e social do grupo e na emergência de um mercado autorregulado de encontros. Os critérios modernos para avaliar um objeto de amor desenredaram-se de enquadramentos morais publicamente compartilhados.”
Essa desregulamentação mostrou-se na emergência da “ética do playboy”, a comodificação do sexo e da sexualidade e sua separação das emoções, a centralidade da atração sexual como critério para a aproximação. A “igualdade emocional” de homens e mulheres, garantida pelos mecanismos tradicionais de controle, é desfeita por essa desregulamentação, fazendo com que o poder social de que os homens já dispõem se torne ocasião para a vulnerabilidade sexual e emocional das mulheres. Com a mutação dos padrões antigos de masculinidade, que integravam afetividade e compromisso, e a liberação sexual, gerou-se uma situação de desigualdade e uma percepção de adiamento masculino do compromisso.
A discussão sobre a “fobia de compromisso” é um ponto crítico do argumento de Illouz. Segundo ela, a escolha romântica moderna sofre a “praga” do desalinho entre o permanente monitoramento da liberdade de escolha e a dinâmica involuntária do sentimento espontâneo. A arquitetura da escolha a a espelhar o padrão que opera nos mercados de consumo, reproduzindo a inibição da decisão e do compromisso. O desejo de maximizar as opções e a antecipação do arrependimento sobre oportunidades perdidas afetam a energia e a capacidade da escolha, criando a abulia, um estado psicológico de ambivalência emocional, caracterizado pela hesitação. Sendo o compromisso uma capacidade de projeção do Self no futuro escolhido e assumido pelo sujeito, constitui a estrutura temporal das promessas. Mas o ideal de autorrealização do Self moderno exige a evasão de identidades fixas e projetos rígidos, o que impede a promessa e o compromisso. Temos, então, uma condição de injustiça emocional:
“A emergência das condições de livre mercado para as uniões oculta o fato de que elas têm sido acompanhadas por uma nova forma de dominação emocional da mulher pelo homem, expressa na disponibilidade emocional da mulher e na relutância do homem em comprometer-se com a mulher, em razão da mudança nas condições da escolha.”
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Assim a liberdade resultante da desregulamentação dos mercados afetivos destruiu a capacidade de escolha e de compromisso, com prejuízo da parte mais emocionalmente disponível e vulnerável – a mulher, em primeiro lugar, mas também toda a teia de relações familiares envolvendo crianças e pessoas idosas.
Nesse ponto é preciso destacar a óbvia implicação: se toda a relação familiar é sujeita à lógica eudemonista-emotivista da satisfação pessoal e da autenticidade emocional, a totalidade da instituição é forçosamente submetida à mesma abulia e à mesma condição de insegurança sistêmica; e, dado o e estrutural dessa configuração moral no capitalismo de consumo, temos nessa fusão de “princípio de dignidade” e eudemonística emotivista o aparelhamento do sistema jurídico pelo capitalismo de hiperconsumo.
Partindo das perspicazes observações de Eva Illouz, sugerimos que, se o paradigma da liberdade individual associado à autenticidade emocional gera abulia e destrói a estrutura ética do compromisso, não pode ser plausivelmente considerado o critério central e organizador do matrimônio e do elo familiar. A situação de laissez-faire emotivista reduz gravemente a estabilidade e perdurabilidade dos vínculos, constituindo-se em uma patologia ou, por analogia, uma praga psicossocial nociva à ecologia social.
O movimento dos direitos afetivos é um dos principais vetores, no Brasil contemporâneo, da injustiça afetiva, reforçando a atitude predatória do homem e deixando mulheres e crianças na vulnerabilidade emocional
A tarefa do Direito, nessas condições, seria a de minimizar a injustiça afetiva produzida pelo Capitalismo Emocional, e para tanto é mister resistir à engenharia emotivista das relações familiares. O oposto, no entanto, vem sendo promovido por parte do Direito de Família contemporâneo; são notáveis nisso as palavras do jurista Ricardo Calderón:
“A sociedade brasileira alterou sua feição familiar... Uma das principais características dessa transformação foi justamente a eleição do vínculo afetivo como o mais relevante elo familiar, seja para as relações de conjugalidade, seja para as relações de parentalidade.”
Essa interpretação, dominante no movimento dos direitos afetivos, mostra-se claramente impotente diante do laissez-faire emotivista e deve ser considerada incompatível com uma sociologia crítica da afetividade moderna. Pior: o movimento dos direitos afetivos é um dos principais vetores, no Brasil contemporâneo, da injustiça afetiva, reforçando a atitude predatória do homem e deixando mulheres e crianças na vulnerabilidade emocional.
E quanto à esquerda? Se seu discurso no campo afetivo-sexual oculta uma grave injustiça, ela produz exatamente o contrário do que ela pensa defender. É um discurso ideológico: uma falsa consciência sexual.