No entanto, Mario Vieira de Mello foi capaz de classificar o próprio de Holanda como um esteta; mas daqueles estetas de uma classe especial, para a qual seria possível contornar as questões éticas e resolver nossos dilemas existenciais e sociais por meio da ciência e da engenharia social. Nisso ele seria um herdeiro, se não das doutrinas, do espírito do positivismo – no que nada haveria de surpreendente, já que essa é uma tara típica de sociólogos. Mario Vieira de Mello desenvolveu uma categoria distinta só para descrever esse perfil, típico da inteligência brasileira: o “homem curioso”.
Nesse caso, o “homem cordial” deveria ser visto como uma fase/manifestação particular do estetismo nacional. O próprio desenvolvimentismo seria uma outra fase – com Sérgio Buarque de Holanda postando-se precisamente na transição entre uma e outra fase.
Como cantei a pedra acima, eu também classificaria o identitarismo como uma forma de estetismo, no sentido Melliano, já que sua paixão moral gira ao redor da absolutização do bem-estar emocional, da autenticidade e da autoexpressão, o que são valores originários do romantismo, segundo Charles Taylor – e, de modo muito interessante, foi esse mesmo romantismo o que alimentou o desenvolvimentismo brasileiro, numa fase anterior. A diferença é que o desenvolvimentismo era nacionalista e socialista, ao o que o identitarismo é liberal e individualista. O identitarismo seria, então, a terceira fase do estetismo nacional.
A coisa poderia ser colocada, grosso modo, nos seguintes termos: a primeira fase do estetismo nacional seria a fase cordial, conservadora, resultante da composição das moralidades que se miscigenaram no país com o catolicismo de contra-reforma; a segunda fase seria a fase nacional-desenvolvimentista, governada por uma intelectualidade cientificista e de inclinação socialista, cobrindo toda a trajetória do desenvolvimentismo nacional, até a ascensão de FHC à presidência. Nessa fase temos uma forte reação contra o autoritarismo cordial, contra a religião e contra as formas sociais do Brasil antigo.
A terceira fase seria, naturalmente, a fase identitarista, de matiz liberal, com um ethos terapêutico e pilotada pelos campos afetivos modernos, segundo a lógica do capitalismo emocional. Essa fase aprofunda a resistência ao autoritarismo cordial, mas sua paixão permanece, ainda, ironicamente, cordial, afetivista e visceral. Essas três “fases” não seriam meramente “etapas” mas, empregando a ambiguidade da analogia química, seriam também substratos que se formam e se adicionam à cultura nacional.
E quanto à cultura ética, no sentido preconizado por Mario Vieira de Mello? Não penso que seria justo negar sua presença ao longo dessas três fases da cultura nacional. Eu faria uma qualificação em seu argumento: ela nunca foi dominante no imaginário moral brasileiro, mas sempre teve uma representação minoritária, principalmente a partir das igrejas católicas e evangélicas.
Cabem ainda algumas palavras finais sobre o grande Sergio Buarque de Holanda: a despeito das críticas de Mario Vieira de Mello, seus méritos devem ser reconhecidos. Embora não tenha sido capaz de enquadrar adequadamente suas descobertas, é certo que sua interpretação foi momentosa, e se tomada como ponto de partida, fornece à discussão melliana da ausência de uma cultura ética nacional uma fundamentação histórico-cultural inestimável.