Como dirá o filósofo e historiador italiano Paolo Rossi, em Esperanças, “não me iludo”. Não me iludo com esses filósofos que há muito tempo “ostentam o próprio saber sobre a história universal, o destino da civilização, o sentido da técnica em geral, o significado global do saber científico, aqueles que sabem como e quando começaram nossos problemas e onde iremos inevitavelmente acabar”. Afinal, muitos deles “falam com segurança, às vezes com arrogância, sobre o Futuro como um Paraíso ou como um Inferno”. Tem para todos os gostos.

No caso de Kant, a crença no progresso da humanidade foi expressa em um pequeno texto de 1795 com o título de: A paz perpétua, um projeto filosófico. Kant não foi o único filósofo a propor projetos dessa natureza. Há muitos deles, e todos eles devem ser inseridos no contexto das relações internacionais modernas. Por exemplo, um dos textos inaugurais dessa tradição foi o tratado do Abade de Saint-Pierre: Projeto para tornar a paz perpétua na Europa, de 1713, publicado em três volumes. Há outros; muitos outros. No meio de tanto sangue e destruição, nada como sonhar com a paz.

No interior da dinâmica do sonho de paz perpétua surge um dos maiores pesadelos do século 20: o horror das guerras mundiais

O fato é que o iluminismo moderno desenvolveu a crença no incondicional esforço humano para tornar “o estado de paz um dever imediato, que, porém, não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si”.  A proposta kantiana de realização desse dever — e aqui reside um dos desafios de quem luta pela paz perpétua amparado apenas pela razão — sugere que essa paz precisa ser assegurada mediante um contrato de “federação do tipo especial, que se pode denominar federação de paz [...]”. Lida no contexto do contratualismo moderno, a instigante pergunta formulada por Kant foi: “é possível conceber um ‘contrato social’ entre Estados?

Essa “liga de nações”, que superará a situação anárquica entre os Estados análoga aos indivíduos no estado de natureza, não pretende acabar com uma guerra, mas acabar com “todas as guerras para sempre”. A paz perpétua e universal entre os Estados surge como uma sedutora ideia reguladora de um final da história.

Mas fica uma dúvida: a tarefa de uma federação mundial em assegurar o fim de todas as guerras para sempre não colocaria fim a todas as guerras sem ter de assumir para si a tarefa de uma guerra de mobilização universal e total? Não seria o conceito de “guerra total” uma conclusão lógica dessa pretensão iluminista? Nós, que sobrevivemos ao século 20, mais do que ninguém, podemos perguntar isso com certa irônica melancolia.

Como nos alerta o historiador David A. Bell, em Primeira guerra total, no interior da dinâmica desse sonho de paz perpétua surge um dos maiores pesadelos do século 20: o horror das guerras mundiais. Duas guerras verdadeiramente apocalípticas com pretensões redentoras que mobilizaram toda a sociedade para a destruição completa dos inimigos. Diz Bell:

O sonho da Paz Perpétua e o pesadelo da Guerra Total estiveram vinculados de maneiras perturbadoras e complexas, cada qual a sustentar o outro. De um lado, uma ampla e persistente corrente de opinião pública continuou a ver a guerra como um fenômeno fundamentalmente bárbaro que deveria desaparecer de um mundo civilizado o mais rápido possível; de outro, houve uma tendência recorrente e poderosa a caracterizar os conflitos que efetivamente surgem como lutas apocalípticas a serem travadas até a destruição completa do inimigo e que poderiam ter sobre seus participantes um efeito purificador, quiçá redentor.

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Convenhamos que não há qualquer possibilidade de deduzir da razão um horizonte perpétuo de paz. Tal projeto será fadado ao fracasso. O sonho de paz perpétua não a disso: um sonho. Como nada tem duração perene, esse tipo de projeto tende a subverter a própria ordem da história, da política e da guerra. Quando penso nisso, toda visão pacifista de mundo parece brotar de uma crença otimista e ingênua na razão. Mas que fique bem claro, isso não é uma tese. Hesito em bater o martelo. Eu também tenho meus sonhos.

De qualquer maneira, a imprudência em representar a esperança futura no presente, de tornar demasiadamente familiar o objetivo que está lá na frente de forma difusa, pois está separado por um abismo de nós, fornece ao homem uma arrogância que pode ser bem perigosa quando se torna a única medida de ações políticas que atuam pela promessa de paz. São esperanças insensatas, já que, nesse caso, a única luta espiritualmente legítima segue sendo aquela que é travada no silencio da vida interior.

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