Chovia, quase nenhum carro ava na rua. De repente, um apareceu, estacionou e viu dele sair o filho. A xícara quase caiu. Ele sabia. Abriu a porta antes de ele apertar a campainha. Chorava mais do que a chuva. A mãe morrera. Ela morreu. Abraçaram-se, sem nada dizer.

Ajudou nos preparativos do enterro, não sabia por quê. O outro, aquele, não se incomodou. O velório estava proibido pelos riscos de contaminação, mas ou a noite toda na casa dela, deles. Não chorava. Tentava apenas ficar próximo ao filho o tempo todo.

Bem ao amanhecer viu-se só com o corpo no caixão, na mesa da sala. Um filme ou à sua frente. Nada disse, nada pensou, nada rezou. Não, não perdoou, ao menos achava que não. Mas não sabia por que veio a lembrança daquele disquinho com as duas músicas que marcaram a primeira conquista conjunta: o apartamento comprado depois de casados com tanto esforço e sacrifício comum. Estava sem móveis, só a vitrola e as taças de vinho que levaram para acompanhar a pizza. Uma única lâmpada pendurada no teto iluminava os dois dançando, esquecidos do tempo, esquecidos de si, de tudo.

Foi como se escutasse. Não se conteve. O cheiro da morte, as lágrimas cantadas aos sussurros: “like a bridge over trouble water I will...”. Retirou o véu, dando um singelo beijo na testa. Foi quando o filho entrou. Despediu-se, surpreendido com um beijo inédito do rapaz. Voltou chorando ao volante, sem resistir.

V.
Meses depois, quando estava quase chegando a sua vez de se vacinar e voltar à vida normal, pensava nisso tomando o café olhando a rua pela janela, lembrando do dia em que o filho viera. Estava bem mais movimentada de carros agora. De repente, um deles parou. Desceu o filho. Desta vez, com malas na mão.

VI.
O carro esportivo agora era do filho. A dieta ficou menos rigorosa, mas manteve o pique na academia. Insistia com as roupas modernas, mas assumira os cabelos engrisalhados. Depois da pandemia, quem não ficou velho?

O último churrasco da faculdade só poderia ser lá. Ajudou nos preparativos, mas não ficou, tinha um encontro. Quando voltou, a festa ainda estava animada. Do alto da escada mirou o salão. Desceu, sem se fazer notar, pegou dois copos de chope e voltou, sentando-se no primeiro degrau ao lado dela. Apontou o filho, tocava o violão. Tinha esquecido que o havia ensinado.

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Subiram para escutar música. Numa das trocas na vitrola, aquele disquinho surgiu no topo da pilha. Congelou por segundos, mas decidiu encarar. A namorada quase dormindo no sofá nada notou. Era namorada? Riu de si mesmo. O filho apareceu, meio bêbado, a festa acabou e ia deitar.

A namorada adormeceu de vez e ele a ajeitou no sofá. Sentou-se no chão e não trocou mais de vinil, fazendo repetir e repetir e repetir as duas músicas, lembrando das inúmeras vezes que fez o filho dormir escutando-as. Será que ele se lembra? Amanhã perguntará.

Antes de dormir voltou ao salão, cantarolando: “Just because of you, boy. Yeah, just because of you.” Não acendeu a luz, deixando que a brasa na churrasqueira iluminasse a vida deixada em forma de bagunça. Procurou pelo violão. Não encontrou, o filho tinha guardado.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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