Goste-se ou não da fala do humorista britânico, deve-se reconhecê-la como um gancho certeiro no queixo do politicamente correto. Ao ignorar esse dado da realidade, o jornalista dá a impressão de que, ferido em seu próprio conjunto de valores, teve um impulso incontrolável de espernear. Comprometido, todavia, com o fetiche da “isenção” que hoje domina as redações de jornal (e que, nesse ambiente, tende a ser mais valorizado que predicados como autenticidade e honestidade), terminou a duras penas se saindo com esse “fraco” – espécie de muxoxo ressentido usurpando o lugar que, por direito, deveria ser o de um palavrão ou um urro de dor. Enfim, sentiu.

Na Folha de S.Paulo, Ricky Gervais foi criticado por um sujeito de nome Tony Goes, que repudiou a “agressividade” e “falta de graça” do comediante. A exemplo do colega do Estadão, Goes confessou alívio com a certeza de que, nos próximos eventos cinematográficos do ano, o bárbaro não estaria presente para escandalizar a pequena e aconchegante província dos progressistas politicamente corretos. “Ainda veremos várias vezes quase todos os presenteados do Globo de Ouro nos próximos dias” – escreveu o suscetível jornalista. “Domingo que vem (13) acontece a entrega dos Critic’s Choice Awards; mais para o fim de janeiro, é a vez dos prêmios do SAG, o sindicato dos atores. A culminação é no dia 9 de fevereiro, com o Oscar. Felizmente, Ricky Gervais não estará em nenhuma dessas festas”. É. Parece que sentiu.

Os responsáveis pelas matérias jamais pretenderam noticiar críticas ao humorista. Pretenderam, isso sim, suscitá-las

Como não podia ficar de fora do festival progressista de lamúrias, o portal G1, das Organizações Globo, também dedicou uma matéria ao caso. Matéria, aliás, cujo conteúdo não tem relevância alguma, pois que mero pretexto para a existência da manchete – “Ricky Gervais causa polêmica no Globo de Ouro com piadas sobre pedófilos, Estado Islâmico e Yoda” – e do lead: “Ele foi criticado por ser ofensivo em seu monólogo de abertura na premiação”.

Sobre o recurso à “polêmica”, não há muito o que dizer. A essa altura, todo mundo já sabe que os nossos jornalistas empregam a palavra invariavelmente para se referir a opiniões e pessoas que os desagradam, e contra as quais, portanto, desejam prevenir o leitor. Nesse sentido, verdades óbvias e de senso comum (tal como a de que um homem vestido de mulher não é uma mulher de verdade) tornam-se “polêmicas” logo que proferidas.

O interessante mesmo está no lead: “Ele foi criticado”. Eis aí a técnica de manipulação jornalística – uma espécie de “pickpocket” linguístico – que costumo chamar de intransitividade maliciosa. O texto não diz por quem Gervais foi criticado. E não há qualquer referência aos inúmeros elogios recebidos, que poderiam perfeitamente justificar uma redação no sentido oposto: “Ele foi elogiado”. O redator escreve como quem reportasse um fato objetivo da natureza, quase um fenômeno meteorológico. “Foi criticado” tem aí o mesmo sentido de “Chove!” ou “Faz sol!” – constatação universal diante da qual, ao leitor, não restaria alternativa senão a de se curvar. Conclui-se que os responsáveis pela matéria jamais pretenderam noticiar críticas ao humorista. Pretenderam, isso sim, suscitá-las.

Em suma: sentiram.

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