Que história é essa de “já há um combinado”? O TSE está de gozação com a cara do eleitor brasileiro? Ora, uma exigência básica de qualquer teste é que a amostragem do material em análise seja aleatória, e não previamente selecionada pelas “entidades fiscalizadoras” que, como sugere o velho adágio latino – Quis custodiet ipsos custodes? –, deveriam, elas sim, ser fiscalizadas em primeiro lugar.

Em condições normais de temperatura e pressão, aliás, a sensata recomendação das Forças Armadas seria até desnecessária, por demasiado óbvia. Mas, pelo jeito, os próceres do tribunal eleitoral não estão interessados em mais transparência, muito menos na descentralização dos mecanismos de auditoria. Ao contrário, parecem estranhamente comprometidos a circunscrever o processo eleitoral nas fronteiras de gabinetes secretos de apuração, minando o princípio da publicidade exigido para que um pleito possa ser considerado verdadeiramente democrático. E sim, esses gabinetes existem, e não comete fake news quem o afirma, senão, ao contrário, os que insistem em negá-lo.

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Uma das frases feitas mais recorrentes no discurso dos porta-vozes do tribunal é que, em 25 anos de utilização das urnas eletrônicas no Brasil, “não houve nenhum registro de fraude”. A palavra “registro” é crucial aí e, antes que tranquilizar, o que faz é inquietar ainda mais o eleitor atento. Pois, na hipótese improvável de que não tenha havido em todo esse tempo ao menos tentativas de fraudar as urnas, a falta de registro pode muito bem constituir prova adicional da insegurança do sistema, que teria falhado em detectar o problema. Afinal, ausência de registro de fraude não significa necessariamente ausência de fraude.

Esse, aliás, foi o principal argumento utilizado nos muitos países em que houve questionamentos ou mesmo a proibição das urnas eletrônicas de primeira geração, as direct recording electronic voting machine (DREs), vetusta engenhoca da qual muito se orgulham nossas autoridades eleitorais, decerto acompanhadas nisso por seus colegas do Butão e de Bangladesh, que, junto com o Brasil, formam o bloco BBB – o nostálgico trio de países ciosos de uma tecnologia de votação dos tempos do baile de debutante da Hebe Camargo, de saudosa memória. A impossibilidade de auditagem nas urnas de tipo DRE esteve no cerne, por exemplo, de uma ação judicial movida por eleitores e candidatos locais de New Jersey durante as eleições presidenciais americanas de 2004.

De acordo com matéria do New York Times, a queixa dos requerentes era que as urnas eletrônicas não permitiam uma recontagem capaz de certificar que os votos tinham sido computados corretamente, além de serem vulneráveis à eventual manipulação de programadores mal-intencionados. Nesse contexto, um grupo formado por advogados de defesa dos direitos dos eleitores e técnicos de computação reuniram 20 mil s numa petição exigindo que as urnas eletrônicas provessem um registro impresso dos votos.

Hoje, não há maior ataque às instituições republicanas e ao Estado de Direito do que o comportamento arrogante, partidário e provinciano de nossas autoridades eleitorais

Em resposta aos questionamentos, o procurador-geral do estado, Peter C. Harvey, respondeu de modo semelhante ao das autoridades eleitorais brasileiras. “Nossa experiência em New Jersey não registrou qualquer problema com as urnas eletrônicas” – disse Harvey, convocando os “especialistas” de um tal Conselho de Tecnologia Eleitoral para minimizar as críticas. Recorrendo a argumentos tão falaciosos quanto os utilizados pelo nosso tribunal eleitoral, um porta-voz do Conselho declarou: “Essas pessoas querem voltar ao tempo da eleição de 2000, quando funcionários eleitorais tinham de iluminar cédulas para descobrir a intenção de voto. É impressionante que uma tecnologia criada para eliminar toda ambiguidade da infraestrutura de votação seja alvo de tantas críticas”.

Representando os queixosos estava a advogada Penny M. Venetis, professora de Direito da Rutgers University. Em resposta àqueles comoventes manifestos de fé tecnológica, Venetis pôs o dedo na ferida: “É assaz irônico que essas máquinas, supostamente designadas para resolver os problemas causados por sistemas de votação antiquados, estejam simplesmente tornando invisíveis esses problemas”. Como também disse certa vez Bruce Schneier, criptógrafo americano especialista em segurança da informação: “Se você acredita que a tecnologia pode resolver os seus problemas de segurança, então você não compreende nem os problemas e nem a tecnologia”.

A demanda do eleitor brasileiro pelo voto impresso auditável advinha precisamente desse aspecto, a percepção de que o nosso sistema eleitoral é uma caixa preta ível apenas a técnicos especializados, funcionários de um tribunal que concentra em si um poder que, segundo uma lógica elementar de pesos e contrapesos, deveria estar distribuído entre várias instituições. Que ministros do TSE tenham feito lobby junto ao Congresso para ignorar essa demanda é a prova que faltava – se é que ainda faltava alguma – da baixa credibilidade do nosso sistema e, por conseguinte, da nossa própria democracia, cada vez mais parecida com “democracias” de tipo venezuelano, chinês ou norte-coreano. Hoje, não há maior ataque às instituições republicanas e ao Estado de Direito do que o comportamento arrogante, partidário e provinciano de nossas autoridades eleitorais. São elas as principais responsáveis por cobrir o pleito vindouro com um manto de desconfiança e animosidade social. Já ou da hora de descerem do palco!