Sabemos bem as terríveis consequências que, dali a algumas décadas, esse elogio do sacrifício e da “vitalidade” pagã teriam na terra natal de Nietzsche. E, se talvez seja injusto atribuir ao filósofo a responsabilidade direta pelo surgimento do nazismo, é inegável que esse tipo de texto nos ajuda a compreender suas raízes culturais e intelectuais. Como sugere René Girard em Eu via Satanás cair como um relâmpago: “Se existe uma essência espiritual do movimento nazista, ela é expressa por Nietzsche”.
Com efeito, o próprio Adolf Hitler manifestava em relação ao cristianismo desprezo similar. Albert Speer, ex-ministro do Armamento do Reich, registrou no seu livro de memórias as opiniões do Führer sobre o tema: “Veja você que o nosso azar foi ter a religião errada” – dizia Hitler. “Por que não tivemos a religião dos japoneses, que consideram o sacrifício pela pátria como o bem supremo? Também a religião maometana nos seria muito mais compatível. Por que tinha de ser o cristianismo, com a sua humildade e frouxidão?”.
Com Nietzsche, o cristianismo é rejeitado de maneira ainda mais dramática, e justo naquilo que tem de mais distintivo: o seu código moral
Traudl Junge, a última secretária de Hitler, também apontou esse seu pendor sacrificial, nietzschiano e anticristão: “Às vezes tínhamos interessantes discussões sobre a Igreja e o desenvolvimento da raça humana. Na verdade, chamá-las de discussões é um exagero, porque ele começava a explicar suas ideias quando um de nós fazia alguma pergunta ou comentário, e apenas ouvíamos. Ele não era membro de nenhuma igreja, e achava que as religiões cristãs eram instituições ultraadas e hipócritas, que atraíam as pessoas como uma isca. Sua religião eram as leis da natureza. O seu dogma de violência combinava mais com a natureza do que com a doutrina cristã do amor ao próximo e ao inimigo. ‘A ciência ainda não é clara sobre as origens da humanidade’, disse certa vez. ‘Estamos provavelmente no estágio mais avançado de algum mamífero que, evoluindo a partir dos répteis, prosseguiu até os seres humanos, talvez via os macacos. Somos parte da criação e filhos da natureza, e as mesmas leis se aplicam a nós bem como a todas as criaturas vivas. Na natureza, a lei da luta pela sobrevivência se impôs desde o início. Tudo o que é mal adaptado à vida, tudo o que é fraco, é eliminado. Apenas a humanidade, e sobretudo as igrejas, se dedicaram a manter vivos os fracos, os mal adaptados, as pessoas de uma espécie inferior’”.
Mas não é preciso remontar a situações extremas como a do nazismo para encontrarmos manifestações de recusa ao princípio cristão da sacralidade universal da vida humana. A lógica sacrificial pagã – pela qual a lei do mais forte é consagrada, e pela qual se ite, tácita ou abertamente, a eliminação de indivíduos humanos tidos por mais fracos, incapazes ou desajustados – ressurge de tempos em tempos no debate público ocidental, especialmente por parte da intelligentsia dita progressista.
Vejamos o caso do escritor britânico Bernard Shaw, um dos pais fundadores da social-democracia. No prefácio à sua peça On the Rocks – escrita em 1933, justo o ano em que os nazistas chegaram ao poder na Alemanha –, ele escarnece da sacralidade da vida humana, fazendo um apelo ao “extermínio científico” de indivíduos socialmente indesejados.
Noutra ocasião, discursando ao público, Shaw teceu comentários sobre o que chamava de “parasitas sociais”, membros da burguesia europeia: “Todos devem conhecer no mínimo um punhado de pessoas sem utilidade neste mundo, que trazem mais problemas do que benefícios. Convém reuni-las e dizer-lhes: ‘Meu senhor, ou minha senhora, você é capaz de justificar sua existência? Se não for capaz, se não estiver se esforçando, se não produz tanto quanto consome (ou talvez mais), então não podemos usar a vasta organização de nossa sociedade para mantê-lo vivo, porque a sua vida não nos beneficia, e não deve mesmo ser de grande valia nem para você”.
Se, na antiguidade pagã, os mais fracos eram sacrificados no altar de deuses como Moloch, hoje o são no altar do Estado iluminista moderno
Em 1934, em entrevista ao jornal The Listener, e como que antecipando o uso do Zyklon B nas câmaras de gás nazistas, ele suplicou aos químicos que descobrissem, para fins seletivos, “um gás humano – mortal, decerto, mas humano, não cruel”. Segundo ele, o Estado deveria ser firme na política referente aos elementos criminosos e geneticamente degenerados da sociedade. “Com muitos pedidos de desculpas e expressões de simpatia, assim como alguma generosidade na satisfação de seus últimos desejos, deveríamos colocá-los nas câmaras letais e livrarmo-nos deles”.
Mais recentemente, o mesmo discurso eugênico e sacrificial foi adotado pelo biólogo e militante ateísta Richard Dawkins, ao sugerir, em resposta a uma leitora que lhe trazia um dilema moral, o aborto de bebês com síndrome de Down. “Aborte-o e tente de novo. Seria imoral trazê-lo ao mundo se você tem uma escolha”, recomendou o catedrático de Oxford com extrema naturalidade, como se falasse do descarte de uma mercadoria indesejada.
Pode-se objetar haver uma grande diferença entre a posição de Shaw e a de Dawkins, uma vez que a primeira diz respeito a pessoas adultas, enquanto a segunda tem por objeto fetos no útero materno. Mas, do ponto de vista da lógica sacrificial subjacente, para a qual a condição humana torna-se mera questão de arbítrio dos mais fortes (os já nascidos, os saudáveis, os bem adaptados etc.), a distinção é insignificante. Prova disso é a facilidade com que alguns "bem pensantes" contemporâneos aram da apologia ao aborto à aceitação do infanticídio (renomeado eufemisticamente de “aborto pós-nascimento”), com base num argumento de inegável coerência, a saber: o estatuto moral de um bebê seria equivalente ao de um feto, carecendo ambos de propriedades que lhes garantam a condição de pessoa, e que, portanto, justifiquem o seu direito absoluto à vida. Bebês e fetos não seriam pessoas atuais, mas apenas potenciais, dizem os juízes da humanidade alheia, a exemplo dos filósofos Alberto Giublini e sca Minerva, especialistas em bioética e autores de um artigo intitulado “Aborto pós-nascimento: por que o bebê deveria viver?”, publicado em março de 2012 no Journal of Medical Ethics.
A morte de Vincent Lambert é, em suma, o triunfo de toda essa mentalidade sacrificial pré- (ou anti-) cristã, o triunfo da visão de mundo de homens como Maquiavel, Rousseau, Nietzsche, Hitler, Shaw e Dawkins, para os quais a vida humana não é um direito natural e inalienável, mas uma concessão estatal a ser distribuída seletivamente pelos donos do poder. Se, na antiguidade pagã, os mais fracos eram sacrificados no altar de deuses como Moloch, hoje o são no altar do Estado iluminista moderno, essa divindade ciumenta e sempre ávida pela fumaça dos holocaustos. Entre o monstro e a sua vítima sacrificial, o cristianismo continua sendo, como o foi no ado, o único e último obstáculo.