Perscrutou-me os olhos, deu dois tragos seguidos no cigarro e continuou:

"Acontece que, lá em cima, o Otto... Não sei se o conheces... Enfim, o Otto andava me perturbando com uma conversa de que, quando aqui embaixo, eu não soubera me explicar, e que me estavam distorcendo por completo. Fiquei preocupado... A última vez que vi o Otto assumir tal gravidade foi no velório do Rosa, que ele chamava de João Guimarães Rosa (nome, aliás, que, assim por extenso, sempre me soou falso, pois Guimarães Rosa é apenas Guimarães Rosa, sendo aquele “João” nada menos que um estrangeiro ali). Pois bem. Fiquei matutando: Pinoia! E se o Otto está com a razão? Pois então, o que eu queria saber é: quem sou eu para o Brasil dos vivos? O que andam fazendo comigo por aqui">Calei-me e ele prosseguiu, erguendo ligeiramente os olhos para o teto.

"Creio já ter dito alhures que a morte foi para mim, desde menino, um assunto fascinante. Tinha uma antologia de mortos na cabeça, sendo que um dos primeiros foi o Pinheiro Machado... Naquele Rio das belas escarradeiras em forma de flor, das tosses intermináveis e pigarros fleumáticos (dos quais o meu amigo João Saldanha foi um dos últimos e dignos representantes), a morte de Pinheiro Machado foi um verdadeiro assunto. Não eram poucos os que o queriam matar (desconfio que o próprio Rui Barbosa fosse um deles, desde que Machado lhe jogara na cara aquela coisa da Guerra do Paraguai)... E, depois, claro, o maior dos mortos, o morto por excelência, o meu irmão, eterno assassinado. De modo que me sinto em casa entre os mortos... Mas fujo do assunto novamente. Então, o que me diz? Conta-me, conta-me. ou-se tanto tempo..."

"De lá para cá, senhor Nélson..."

"Apenas Nélson. Aceita um cigarro">O relógio na parede marcava 15h30. Naquele horário, o burburinho da hora do almoço já cessara, e a grande maioria dos clientes já havia retornado ao trabalho. Foi sorte, porque a fumaça do cigarro já enevoara o ambiente. Com poucos clientes restando, um grupo de garçons se queixava de falta de grana, e sonhava com empreendimentos mirabolantes. Aparentemente, só eu e o garçom que nos servia podíamos ver e ouvir o Nélson. Empolgado por aquilo que me pareceu ser um olhar aquiescente do meu nobre interlocutor, arrisquei:

"Pois hoje o senhor teria que escrever sobre cretinos verdadeiros. Ao que parece, a inteligência requerida para ser um falso cretino acabou faz tempo."

O cretino é um fingidor.
Finge assim, com tanto ardor,
Que sói parecer até
O asno que deveras é!

"Primeiro Shakespeare, agora Pessoa", debochou o Nélson. "Hoje os mortos hão de te puxar o pé."

Notando meu embaraço, continuou, com ares paternais.

"Veja você que, quando eu era criança, achava-me assaz ridículo. Era miúdo e cabeçudo como um anão do Velázquez. Na escola, na hora da merenda, tentei por vezes reerguer minha autoestima com a banana que levava de casa, e que comia lentamente, às vezes chupando-a primeiro, como a um chicabon. Olhava para os outros garotos como se dissesse: 'Eu tenho uma banana. Estou comendo uma banana'. Mas o meu amor próprio durou somente até o dia em que reparei no lanche das outras crianças, melhores e mais bem embrulhados que o meu. Lembro-me de que uma das minhas invejas mortais foi um garoto, já taludo (eu era miúdo e tinha vergonha da minha cabeça grande). Trouxe a merenda embrulhada em papel de pão e amarrada com barbante. Desfez o nó do barbante e abriu o papel... Então, eu a vi. Era um sanduíche de pão com ovo. Pão com ovo! O menino pôs-se a comer. A gema escorria-lhe da boca como uma baba amarela. Só percebi que tinha amadurecido na vida quando pude experimentar, na hora em que bem entendesse, aquela sensação da gema escorrendo pelo queixo. A gema mole é o esplendor do homem maduro, compreendes">Nélson deu um tapa na própria testa. Pude ver os longos pelos que lhe saíam das orelhas titânicas.

"Não é que talvez o Otto esteja certo? E só Deus sabe o quão difícil para mim é ter de itir isso. Hoje arrependo-me imensamente de ter usado a malfada expressão. O brasileiro é um fascinado por palavras de efeito. James Bryce já notara que, para o brasileiro, e, sobretudo, para o bem pensante brasileiro, as palavras são mais importantes que as coisas... Então 'anjo pornográfico' grudou como cola em seus ouvidos, não é? Sou, ao fim e ao cabo, o anjo pornográfico. E o que mais? O que mais">Balançando levemente a cabeça, o anjo pornográfico sorriu por dentro um riso convulsivo, logo antes de exclamar:

"Ah, o Arnaldo, o meu cineasta... Sempre retorceu a boca desse jeito, também quando dizia a palavra 'careta'... No tempo em que filmava o Toda Nudez, eu já começara a notar que Arnaldo tomava-me como um Bukowski ou Henry Miller... Será mesmo que o Nélson Rodrigues do Arnaldo acabou por se consagrar? Pinoia! Quantas não foram as vezes em que tentei convencer o meu cineasta de que estive sempre mais para Dostoievski do que para Bukowski, mais para Bernanos do que para Miller?"

"Mas não é só o Jabor. Há outros... O Pedro Bial, por exemplo..."

"Quem">Dito isso, olhou ao redor, braço esquerdo erguido à procura do garçom.

"Traga-me um chope, faz favor. A úlcera já está melhor. Se torna a se rebelar, afogo-a no leite. É batata!"

Pegou um dos últimos três cigarros do maço, acendeu e prosseguiu.

"Perguntavas-me se sou cristão... Claro que sim. Não chego a ser como o doutor Alceu de Amoroso Lima... Um católico como o doutor Alceu há de ter Deus enterrado em si como um sino. Tinha pavor, aliás, quando ele prometia rezar por mim... Mas tampouco sou como o dom Hélder, que só olha para o céu para ver como está o tempo. Diria que fui um cristão comum e, por muito tempo, roguei a Deus, como o jovem Agostinho: 'Senhor, dai-me o dom da castidade, mas não agora'."

"Então o Jabor está errado sobre a questão do sexo na tua obra? Por que, então, falavas tanto de sexo? Tuas personagens eram bem safadinhas, não">E o grande Nélson Rodrigues riu tanto que se engasgou, padecendo de um ataque de tosse que faria o próprio João Saldanha espumar de inveja.

"Mas agora me dou conta", olhei desconfiado para ele. "Como o senhor soube da Marcha das Vadias se, como me disse antes, tem estado afastado daqui deste baixo mundo">E, antes que eu pudesse lembrar-lhe de que acabara de plagiar Dostoievski, Nélson esticou as asas e saiu voando, já não como um fantasma, mas como um anjo, tão pornográfico quanto o Arcanjo Gabriel. Na saída, esbarrou com uma das asas na porta de entrada, e voou claudicante, feito pombo ferido, pela Rio Branco, em direção à Cinelândia.

Eram quase 18 horas quando, então, o garçom esticou-me a conta bem embaixo do nariz:

"São 52 reais, mais os 10%. O leite é por conta da casa."

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