Assim como, um século antes, fizeram Binding e Hoche em Permissão para destruir a vida indigna de ser vivida, Schuklenk apela ao custo socioeconômico como justificativa para o infanticídio médico:
“Em circunstâncias como essas, emerge sempre a questão sobre se seria uma decisão sábia alocar recursos escassos de saúde necessários ao tratamento. Prolongar a atenção médica para a crianças seria fútil, consistindo num desperdício de recursos escassos. Os recursos de saúde devem ser alocados onde possam efetivamente beneficiar os pacientes e melhorar sua qualidade de vida.”
É à ideologia bioeticista que Barroso e outros magistrados de palanque têm recorrido para justificar as suas decisões em favor do aborto, da eutanásia, do suicídio assistido e demais itens da agenda desse macabro humanismo
Mas a coisa vem de longa data. Já em 1971, o editorial de um jornal californiano de medicina antecipava o que viria, ao afirmar, a exemplo dos darwinistas sociais de um século antes, que “a ética ocidental tradicional sempre pôs grande ênfase no valor intrínseco e igualitário de cada vida humana”. Essa “ética da sacralidade da vida”, continuava o editorial, tem sido “a base da maioria das nossas leis e das nossas políticas públicas, bem como a pedra angular da nossa medicina”. Resta que “essa tradução ética tem sido erodida em seu cerne, e pode eventualmente ser abandonada… Escolhas difíceis terão de ser feitas, escolhas que fatalmente violarão e destruirão a ética ocidental tradicional. Será necessário e aceitável atribuir um valor relativo antes que absoluto a coisas como a vida humana”.
Nota-se que, tanto quanto para os eugenistas e os darwinistas sociais, a ética dos bioeticistas contemporâneos também é utilitarista. Como escreve Anne Maclean em The Elimination of Morality: Reflections on utilitarianism and bioethics, “todos os principais bioeticistas esposam alguma versão de utilitarismo”. E tanto quanto os eugenistas, os bioeticistas contemporâneos também têm contribuído para a formação de um sistema de valores que pretere os doentes mais graves e os incapacitados, cujas vidas são tidas por “indignas”; que enxerga como um desperdício de dinheiro a manutenção de tratamento médico para essas pessoas; que, em última instância, aceita a sua morte – e, cada vez mais, até mesmo o seu assassinato – como resposta legítima às dificuldades causadas por sua doença ou deficiência.
A bioética segue hoje o mesmo caminho trilhado pela eugenia há mais de um século. Partindo de um secto acadêmico, espalha-se rapidamente pela intelligentsia de todo o mundo, desembocando num tipo de sociedade na qual o ato de matar se confunde com beneficência; o suicídio torna-se “racional”; a morte natural, quase uma imoralidade; e cuidar comiva e adequadamente de idosos, prematuros, deficientes e doentes terminais é considerado um “fardo” calculado em custo financeiro e emocional. Tendo abandonado a ética da sacralidade da vida humana, que proclama o valor moral intrínseco de cada indivíduo, os bioeticistas estão construindo um ambiente no qual os direitos das pessoas serão baseados numa explícita hierarquização da vida humana.
De fato, ao rejeitarem a excepcionalidade da espécie humana na ordem das coisas, esses ideólogos afirmam que a qualidade de ser humano é algo relativo, e que, em termos morais, o que importa é o pertencimento a uma “comunidade moral”, um título conquistado mediante o cumprimento de certos requisitos – usualmente ligados a “um conteúdo mínimo” que inclui, prioritariamente, a autonomia e a autoconsciência –, os quais os bioeticistas consideram necessários para a aquisição das prerrogativas atribuídas à pessoa, incluindo aí o direito à vida. Como veremos com mais detalhes na semana que vem, é à ideologia bioeticista que Barroso e outros magistrados de palanque têm recorrido para justificar as suas decisões em favor do aborto, da eutanásia, do suicídio assistido e demais itens da agenda desse macabro humanismo.