Em oposição ao ideário kantiano, bem como ao dos philosophes iluministas na outra margem do Reno, Herder brandiu a ideia particularista de Kultur contra as pretensões da universalista Civilization. A noção de Kultur – ou, preferivelmente, de Kulturen, no plural – enfatizava a diferença, tomando as culturas humanas como expressões singulares e irredutíveis, íveis de ser compreendidas apenas em seus próprios termos, e com base no desenvolvimento histórico particular a cada uma. Contra o imperialismo cultural iluminista, um dos pais do romantismo exasperava-se: “Os príncipes falam francês, e logo todos seguirão seu exemplo; e então, vejam, a bem-aventurança raia no horizonte! A idade de ouro, quando todo o mundo falará uma só língua, uma linguagem universal! Um só rebanho, e um só pastor! Mas onde estão vocês, culturas nacionais?”

Numa agem de Ideias para uma filosofia da história da humanidade (1784-1791), Herder sintetizou o espírito da causa soberanista contra a artificialidade das invenções globalistas, a exemplo da União Europeia. Em suas palavras:

“O Estado mais natural é, portanto, uma nação, uma família ampliada com um caráter nacional único. Isso é mantido por séculos e se desenvolve de forma mais natural quando os líderes vêm do povo... Nada, portanto, é mais manifestamente contrário aos propósitos do governo político do que o alargamento antinatural dos Estados, a mistura selvagem de vários povos e nacionalidades sob um só cetro. Um cetro humano é muito fraco e fino para que partes tão incongruentes sejam enxertadas nele. Esses Estados são apenas construções improvisadas, máquinas frágeis... e suas partes componentes estão conectadas por artifícios mecânicos em vez de laços de sentimento.... Seria apenas a maldição do destino que condenaria à imortalidade essas uniões forçadas, essas monstruosidades sem vida. Mas a história mostra suficientemente que os instrumentos do orgulho humano são feitos de barro, e como todo barro, eles se dissolverão ou se desfarão em pedaços.”

Seja nas tentativas mais violentas de destruição da civilização ocidental – como as promovidas pelo radicalismo islâmico –, seja nos ataques globalistas às soberanias nacionais, Israel está sempre na linha de frente, na condição de alvo primordial

Discípulos de Kant, os globalistas inspiram-se em exemplos históricos célebres, dentre eles o império egípcio, o império de Alexandre, o Grande, o Império Romano, os impérios de Carlos Magno e dos Habsburgos, o império de Napoleão, o Império Britânico e assim por diante. As instituições contemporâneas representativas dessa ideia de império são, sobretudo, a União Europeia e todas as organizações e instituições que compõem o sistema ONU. Por sua vez, os soberanistas, herdeiros intelectuais de Herder, buscam referências na Israel bíblica, nas pólis ateniense e em outras cidades-Estado gregas, na República romana, nas cidades-Estado italianas e nas cidades livres do norte da Europa durante a Idade Média e a Renascença, na Inglaterra elisabetana e na República dos Pais Fundadores dos EUA. Hoje, seus representantes são os Estados-nação liberais e democráticos em geral, e particularmente o Estado de Israel e os EUA, países dotados de um visceral senso de autonomia.

Daí que, como comecei a argumentar no artigo anterior, as disputas em relação a Israel compõem uma das frentes contemporâneas do conflito entre globalistas e soberanistas, entre o time de Kant e o time de Herder. Seja nas tentativas mais violentas de destruição da civilização ocidental – como as promovidas pelo radicalismo islâmico –, seja nos ataques globalistas às soberanias nacionais, Israel está sempre na linha de frente, na condição de alvo primordial. Enquanto, por exemplo, o Hamas e o governo iraniano se empenham na campanha genocida pela aniquilação do Estado de Israel, os globalistas se empenham numa vasta campanha mundial de desmoralização, retratando como infames, bárbaras e desumanas as tentativas israelenses de reagir, sobreviver e manter a sua soberania (isso, é claro, quando não estão contribuindo ativamente com os primeiros).

Com efeito, o que vimos acontecer no pós-7 de outubro obedeceu a um velho padrão, observado inúmeras vezes – na Segunda Intifada, na operação em Jenin no ano de 2002, na Segunda Guerra do Líbano em 2006, na guerra em Gaza de 2008-2009, no incidente da assim chamada “flotilha da liberdade” em 2010 etc. As etapas do movimento anti-Israel são sempre as mesmas: primeiro, os terroristas atacam; depois, Israel responde aos ataques lançando mão de sua superioridade militar; em seguida, os governantes globais se juntam ao bloco radical islamista e/ou terceiro-mundista para condenar duramente a resposta de Israel, em resoluções da ONU, relatórios de ONGs, processos contra autoridades israelenses e pedidos de desinvestimento, boicotes e sanções.

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Portanto, diferentemente dos terroristas islâmicos (mas, muitas vezes, de maneira complementar), os globalistas travam uma guerra política não violenta – posto que persistente e insidiosa – contra a soberania democrática da nação israelense. Os herdeiros políticos de Kant não buscam propriamente a destruição de Israel, mas querem subordinar o país à autoridade global. Do ponto de vista israelense, o assédio globalista constitui um tipo diferente de ameaça existencial, voltada não contra a existência material de Israel, mas contra a sua existência política como um Estado soberano e, como corolário, contra a própria ideia de soberania Estado-nacional.

Com efeito, Israel tem sido um alvo frequente das organizações internacionais, que o acusam de ser um proxy dos Estados Unidos e dos Estados soberanos de maneira geral. Precedentes em relação às leis da guerra, ao direito internacional sobre direitos humanos, à jurisdição universal e temas afins costumam ser abertos primeiramente contra Israel, para em seguida mirarem os Estados Unidos e outras democracias liberais. Da perspectiva transnacionalista, o nacionalismo israelense é um obstáculo à nova ordem e à “paz perpétua” kantiana. Por outro lado, os judeus sabem que, diante dos reiterados ataques de extermínio de que seu país é vítima, a tal “comunidade internacional” não oferece nada além de condolências. Da perspectiva de Israel, há toda uma história milenar ensinando esta clara lição: só há “paz perpétua” no cemitério.