Savulescu tem razão. O argumento dos autores não é novo. Vários acadêmicos já o defenderam, entre eles os citados Singer, Tooley e Harris. Mas também – por que não os incluir na lista? – Karl Binding e Alfred Hoche. Afinal, estamos falando de acadêmicos travando uma “discussão livre e propriamente acadêmica”. Eles não são apologistas apaixonados ou ideólogos radicais. São cientistas. E, em se tratando de ciência, ciência, ciência, tudo o que fazem é extrair conclusões das premissas corretas, certo?
Nem tanto. É preciso não esquecer que, assim como o comunismo, o nazismo se pretendeu “científico”. O nazista Rudolf Hess, braço-direito de Hitler, chegava a dizer celebremente que o nazismo era apenas “biologia darwinista aplicada”. É claro que, para burlar esse delicado problema, pode-se sempre adotar o expediente fácil de acusar os nazistas de estarem praticando “pseudociência”. Mas, como mostra Richard Weikart em From Darwin to Hitler: Evolutionary, Ethics, Eugenics and Racism in , os nazistas não tiraram a ideia de extermínio “científico” ex nihilo, baseando-se, ao contrário, nas ideias dos mais eminentes eugenistas e darwinistas alemães, a começar por Ernst Haeckel. Obviamente, ninguém ali se considerava pseudocientífico, assim como os cientistas e cientificistas de hoje não se o consideram, muito embora nenhum deles possa ter certeza de que, mais dia menos dia, a sua ciência não venha também a ter o desprazer de receber o prefixo pseudo-.
Afirmar que certas considerações éticas decorrem necessariamente (e consensualmente) de um dado conjunto de fatos científicos é algo extremamente perigoso
O problema, portanto, está menos em averiguar o acerto ou o erro de tal ou qual prática científica, e mais na própria premissa compartilhada por cientificistas de ontem e de hoje. Tanto quanto Rudolf Hess e os nazistas, por exemplo, Savulescu e seus pares ideológicos parecem concordar com a ilusão positivista de que res ipsa loquitur, “a coisa fala por si”, e de que, se sabemos algo sobre a biologia, devemos agir com base nesse saber, extraindo-lhe conclusões pretensamente lógicas e necessárias, inclusive nas esferas social, política e moral. Resta que essa ideia, segundo a qual certas conclusões decorrem de modo autoevidente de verdades científicas, esteve por trás do movimento eugenista de inícios do século 20, bem como do socialismo “científico” dos comunistas e do biologismo “científico” dos nazistas. A despeito da mudança nos conteúdos científicos tidos por verdadeiros ou falsos, a premissa permanece intacta nos meios intelectuais e políticos contemporâneos, tendo se manifestado de modo particularmente radical a partir da pandemia de coronavírus, durante a qual toda discordância em relação a políticas públicas e escolhas morais ou a ser vista como uma perigosa negação da ciência. Não se pode extrair uma norma de um fato, um “deve ser” de um “é”. Afirmar que certas considerações éticas decorrem necessariamente (e consensualmente) de um dado conjunto de fatos científicos é algo extremamente perigoso.
Por fim, gostaria de ressaltar que Karl Binding e Alfred Hoche não eram nazistas, e não tiveram relações com o partido nacional-socialista. Binding morreu em 1920, ano da publicação de sua influente obra, e, portanto, muito antes da ascensão dos nazistas ao poder. Hoche era casado com uma judia, e teve um parente vitimado pela máquina nazista de extermínio “científico” em prol da “saúde do Reich”. Nenhum dos autores imaginou o rumo que seria dado às suas ideias. Provavelmente, não concordariam com ele. Mas foi justamente pelo fato de serem acadêmicos, e avessos a paixões ideológicas, que se tornaram perigosamente instrumentalizáveis, e os seus argumentos tiveram o peso que tiveram. Os primeiros a levar as suas ideias a sério não foram soldados, militantes e baderneiros nazistas, mas os médicos, psiquiatras e advogados responsáveis pela implementação do programa T4 dos campos de extermínio, que viam a própria atuação como benéfica para a saúde coletiva. E, num tempo em que a ciência voltou com tudo como autoridade em matéria de política, isso deveria nos servir de alerta.