Muito se tem escrito a propósito de direitos humanos, direitos fundamentais e direitos humanos fundamentais na era digital. Todavia, normalmente são teses que retratam a colisão entre direitos, seu uso e abuso nos mundos digitais. Os mesmos direitos fundamentais, outrora analógicos, postos diante de desafios virtuais.
Ao que me parece, o que aqui se discute não são propriamente outras gerações, mas sim novas formas de tráfego de direitos fundamentais (igualdade, liberdade, intimidade, propriedade, informação, comunicação, etc.). Estes persistem os mesmos, submetidos a outros meios de exercício, agressão e proteção. Já existe uma minuta da Carta dos Direitos Digitais da União Europeia, que retrata algumas dessas preocupações e amplia o sentido dos direitos fundamentais para o mundo digital.
Mas o que pretendo tratar neste brevíssimo ensaio são direitos fundamentais de nossas personas digitais: aqueles que o ser humano experimenta em decorrência de sua mutação em pixels, métricas digitais, dados e perfis digitais. Não estou a enxergar, portanto, a pessoa como um ser de carne e osso (nem em sua dimensão espiritual ou de pensamento), mas sim quando ela se transforma (ou é transformada) em informações digitalizadas e, assim, assume nova dimensão existencial. Somos números que, submetidos a algoritmos, configuram a(s) nossa(s) presença(s) no universo digital e fazem com que sejamos (ou deixemos de ser) algo ou alguém. A persona digital, que transcende a natural.
Será que essa nova configuração da raça humana – um ser digital que desconhece a si próprio e, também em razão dessa ignorância existencial, precisa de proteção diferenciada – faz nascer correspondentes direitos fundamentais? Tornamo-nos o alter digital, que é mais do que nós mesmos? Ou estou a tratar de decorrências de informações conaturais, dos números que também somos? Seriam tais características fundamentais ao ser humano, tanto aos que surgiram quanto aos que se tornaram digitais? Enfim, a nossa persona digital merece consideração e proteção autônomas, na condição de direito fundamental do ser humano digitalizado?
Minha persona digital tem autonomia diferenciada e merece ser protegida de métricas que desconhece
Pensemos um pouco mais a fundo. Bem vistas as coisas, já existem duas formas de a pessoa ser, ter e exercitar direitos inerentes à condição humana. Por um lado, o modo analógico: a vida real em nossa interação conosco, com os demais sujeitos e o meio ambiente sensível. O sujeito a coabitar sociedades artificiais, por si criadas para tentar domar a natureza. Nós pensamos, conversamos e pretendemos nos fazer conhecer e reconhecer. Vemos, ouvimos e sentimos cheiros e sabores. Este é o mundo, digamos assim, newtoniano, onde maçãs caem nas nossas cabeças e geram reações físicas.
Por outro lado, existe o universo digital, onde ingressamos mesmo sem saber e nos submetemos a desconhecidas interações, avaliações e configurações. Tornamo-nos outros, por meio de programas que dizem o que somos e quem é nossa persona digital. Usufruímos e, subliminarmente, tornamo-nos seres/produtos virtuais. Basta um telefone celular ou um cartão de crédito, para que os dados sejam compartilhados.
Essa mutação envolve a constante e aberta disponibilização de nós mesmos, versão digital. Lá, nem sempre nos vemos, ouvimos ou sentimos. De seres humanos físicos, que procuram se entender intimamente em exercícios de auto-compreensão, alteramo-nos para um conjunto imponderável de dados que desconhece a si próprio. Integramo-nos no big data universal – a natureza indomada – e temos nossas individualidades reconstruídas. Deixamos de ser quem conseguimos imaginar e nos transformamos em quem os algoritmos dizem que somos.
A soberania do indivíduo e da autonomia da vontade não existem quando ele migra (ou é migrado) para o ambiente digital, eis que as liberdades são reconfiguradas. Lá – ou, melhor: aqui, neste exato instante em que você lê este texto – sofremos mutações e nos submetemos a métricas que definem nossa existência e o que desejamos. Nos é dada outra personalidade. Somos vistos por olhos digitais e examinados por algoritmos, que constroem nossa identidade à margem da consciência individual. A nossa persona digital é oferecida àqueles que pretendem nos transformar ainda mais, que definem o que queremos comprar, votar, como ser felizes e com quem conversar. Existe previsão, monitoramento e controle dos seres humanos digitais – que, sublinhe-se, são distintos dos reais.
A provocação que desejo fazer é a seguinte: tais conjuntos de dados e métricas merecem conhecimento e proteção pautada em si mesmos? Possuem dignidade existencial? Os dados em que nos transformamos instalam novos direitos fundamentais, a protegê-los e blindá-los? Enfim, eu defendo que minha persona digital tem autonomia diferenciada e merece ser protegida de métricas que desconhece. Ela não pode ser apresentada aos outros – mesmo sem nome – sem saber quem é e quais são seus interlocutores. Sua personalidade digital não pode ser construída por terceiros anônimos. A persona digital é a titular da nova dimensão de direitos fundamentais: o ser humano, quando se digitaliza, merece proteção nessa condição.
Em 1968, o genial Philip K. Dick escreveu seu Do androids dream of eletric sheeps, sobre robôs construídos com material orgânico semelhante ao nosso, destinados à migração e trabalhos para preservação da raça humana. Todavia, como fica claro em Blade Runner, que se a no futuro distópico de 2019!, em determinado instante eles constatam que morrerão jovens. Voltam ilegalmente para a terra, a fim de conhecer o criador e fazer com que sua vida seja preservada. O enredo diz respeito a androides-replicantes clamando pelo mais humano dos direitos fundamentais: a preservação da vida. São robôs à busca de seus direitos fundamentais – inclusive a memória, como na última frase dita pelo replicante mais intenso do filme.
Hoje, o caminho é inverso. Os seres humanos foram transformados em personas digitais, com material orgânico semelhante ao contido na mente dos replicantes. Precisam clamar, nessa condição virtual, pelos correspondentes direitos fundamentais para humanos digitais.