Bem rapidamente, porque a ideia dessa coluna não é ser acadêmica, podemos explicar que a liberdade de crença é uma liberdade de foro íntimo, nos moldes das liberdades de pensamento e de consciência. Enquanto a liberdade de pensamento é aquela em que o ser humano fundamenta suas convicções, a liberdade de crença desenvolve o relacionamento com a divindade. Essas liberdades são praticamente absolutas porque nem o Estado e nem ninguém pode invadir o pensamento e/ou a crença de alguém para obrigá-lo a pensar ou crer dessa ou daquela forma. É na liberdade de crença que o “belief” se desenvolve, como ensina Jonatas Machado, para posteriormente acontecer o “action”, isto é, a externalização da crença. E o direito de externar a crença é o que denominados do plexo de direitos da liberdade religiosa.

A liberdade religiosa é a dimensão externa da crença e protege o religioso nos mais variados desdobramentos de sua fé. Essa proteção é o que a doutrina europeia denomina de “dimensão subjetiva da liberdade religiosa”. É o famoso “eu tenho o direito tal”. O fiel tem o direito público subjetivo de expressar sua fé no espaço público, privado, de forma individual e coletiva, bem como de defendê-la, de angariar prosélitos, de ser ensinado e ensinar sobre ela, além de cultuar publica ou privadamente, individual ou coletivamente seu Deus. Outra dimensão da liberdade religiosa é a institucional: a liberdade de organização religiosa. As confissões religiosas de qualquer credo podem se organizar institucionalmente, com normas próprias, tendo total liberdade de autocompreensão, autodeterminação, autocriação etc. Por fim, ainda temos a dimensão objetiva da liberdade religiosa, essa praticamente esquecida ou desconsiderada no Brasil. A liberdade religiosa possui uma posição privilegiada em qualquer Estado Democrático de Direito, tendo em vista sua função estruturante e ordenadora da sociedade.

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As festejadas doutrinas de direitos humanos europeias e norte-americanas lembram que a plena liberdade religiosa resulta em uma comunidade inclusiva e plural. O plexo de direitos (citados antes) decorrentes da liberdade religiosa, além de organizar socialmente o Estado, assegura o gozo dos direitos civis e políticos de seus cidadãos. O grande constitucionalista português Jorge Miranda, em seu Manual de Direito Constitucional, ensina: “Sem plena liberdade religiosa em todas as suas dimensões – compatível com diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado – não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política”.

Em uma simples pesquisa on-line é possível verificar que qualquer democracia efetiva entroniza a liberdade religiosa como uma de suas principais liberdades, quando não a principal, como fazem Portugal, Itália e Espanha, por exemplo. E a liberdade de crença? Essa é interna; até países como o Paquistão a possuem. Evidentemente que sem liberdade de crença não temos liberdade religiosa, porque esta é decorrente daquela. Por que, então, a separação? Primeiro, porque são liberdades distintas e com funções distintas, tanto que alguns países têm uma e não têm a outra; segundo, porque o núcleo essencial da primeira é um, enquanto o da segunda, por óbvio, é outro. Na liberdade de crença o núcleo essencial é o sistema moral da religião do fiel e as implicações sobrenaturais na sua vida; dito de outra forma: “no que creio”, “por que creio”, “para onde vou” e “por que estou aqui”. Na liberdade religiosa o núcleo essencial é dividido na liberdade de proselitismo, ou seja, de dizer aos outros os motivos pelos quais creio e convidá-los a crer também; dessa liberdade depende a própria existência da respectiva religião e a liberdade de culto. O culto é a cerimônia solene realizada individual ou coletivamente, conforme o código moral da respectiva crença, em que o fiel deposita sua adoração e amor à divindade cultuada. É o momento ápice de qualquer religião, e por isso sua liberdade é nuclear no cluster right da liberdade religiosa.

Qualquer democracia efetiva entroniza a liberdade religiosa como uma de suas principais liberdades, quando não a principal

E qual a importância de identificarmos o núcleo essencial das liberdades? A importância está no fato de que os núcleos são os elementos formadores das liberdades. Sem o núcleo a liberdade deixa de existir; logo, em qualquer colisão de direitos o núcleo deve sempre ser preservado. Não preservar o núcleo é ferir o alicerce de uma liberdade. É extingui-la.

Agora, levando em consideração esses conceitos-chave, como alguém pode ser processado, levado à polícia ou demitido por dizer que “menino é menino e menina é menina”, ou que “Deus criou o homem para ter relações sexuais com a mulher e não com outro homem”, sendo que todo o sistema moral que orienta a crença (belief) desse fiel diz exatamente isso?

Vejam onde paramos quando não estudamos de forma vertical uma liberdade tão importante quanto a religiosa! Possamos, nessa semana em que comemoramos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, refletir sobre isso e termos ações concretas no sentido de produzir mais conteúdo científico e acadêmico de qualidade.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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