O que o relatório apresenta é que, justamente em face da pandemia, muitos governos já notoriamente perseguidores de religiões minoritárias pelo mundo têm usado o momento para uma perseguição sistemática ou para, junto com a sociedade, estigmatizar e discriminar tais comunidades como sendo “covidários”, lugares de especial disseminação do vírus.
Lugares como Myanmar, China, Eritreia, Irã, Nigéria, Coreia do Norte, Paquistão, Arábia Saudita, Tajiquistão e Turcomenistão são países conhecidos pelas violações constantes – estamos falando de tortura, tratamento ou punição desumanos, detenção sem processo formal ou sequestro de pessoas, pelo simples fato de professarem um imperativo de consciência de fé religiosa diverso do lugar, ou, em casos como a Coreia do Norte, o simples fato de exercerem a fé. Aqui pelas américas, Cuba e Nicarágua são os países com maiores violações, de acordo com a lista anual. Não é pouca coisa. Nos 26 países com maiores violações contra a liberdade religiosa há uma população aproximada de 4 bilhões de pessoas.
As restrições às liberdades estão em absoluta linha de dificuldades de concretização de outros elementos – liberdade econômica, rule of law (respeito às leis enquanto instituição que estejam acima do poder político), respeito à propriedade privada. Há uma estreita correlação entre desenvolvimento humano e liberdade religiosa. O Brasil, por exemplo, mesmo apresentando o melhor sistema constitucional de laicidade do mundo, está longe dos primeiros lugares em termos de liberdade religiosa justamente pela dificuldade de adensamento deste conceito na sociedade, no Estado, no Judiciário, entre muitos líderes religiosos. Certamente, se não tivéssemos um Estado constitucional de laicidade colaborativa no Brasil, a violações à liberdade religiosa seriam muito piores.
Em outra parte do relatório, explica-se a missão da comissão como um esforço dos Estados Unidos em promover a liberdade religiosa em todo o mundo. Esta comissão foi criada pelo Congresso norte-americano em 1998, e tem contribuído para muitos estudos importantes na área desse direito fundamental. Segue dizendo que o direito internacional requer que Estados respeitem a liberdade de religião ou crença para todos, sem distinção. E que não devem, de forma alguma, obrigar coercitivamente – por meio da lei ou do Poder Judiciário – a forma como comunidades religiosas devam interpretar sua fé.
Onde a liberdade religiosa é mitigada, a democracia enfraquece e as outras gerações de direitos somem na escuridão proporcionada pela sombra de um Estado cada vez maior, à custa de nossas liberdades
Este mesmo espírito é que moveu entidades como o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) a serem constituídos e buscarem ser uma voz em nosso país para a promoção das liberdades e para a denúncia de suas violações. Por conta disso também é que, diante da absolutamente injusta decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito da ADPF 811, que permitiu a estados e municípios decretarem o fechamento absoluto de templos e casas religiosas, o IBDR denunciou o fato à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, também nesta semana.
O pedido é para que a entidade seja ouvida perante um Comitê Temático de Liberdade de Expressão (a liberdade religiosa não tem um comitê específico na OEA, o que também é algo bastante curioso e triste), no qual se demonstre que o ativismo judicial e a polarização política têm tragado direitos humanos fundamentais, entre eles a livre manifestação da fé – aspecto essencial para a melhor contenção de efeitos devastadores da pandemia. Não se está respeitando o consagrado princípio da proporcionalidade, previsto na Convenção Americana para Direitos Humanos, em outros tratados semelhantes e na própria ordem constitucional interna.
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Como já dissemos em outras ocasiões, a liberdade religiosa é um locus, um espaço na tensão e conflito permanentes no tecido social. Ou se ocupa e assume seu lugar, ou será diminuída (quem sabe extinta) por outras forças. Cabe à sociedade entender esta como uma sirene da democracia, assim como eleições livres e outras liberdades. Ou em breve poderemos começar a figurar em listas de observação por intolerância religiosa – corolário de tantas outras intolerâncias.
O fato é que onde a liberdade religiosa é mitigada, a democracia enfraquece e as outras gerações de direitos somem na escuridão proporcionada pela sombra de um Estado cada vez maior, à custa de nossas liberdades. Entrega a liberdade religiosa ao arbítrio do Estado e o verás fazendo as vezes de Deus, pedindo tua devoção sob as chibatadas do autoritarismo. Que possamos escutar a sirene da democracia nos avisando que o Estado está crescendo e avançando em nossa direção.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos