Permitir que o Estado interfira nos dogmas religiosos e em questões espirituais coloca em risco a própria essência da religião, podendo eliminar o fenômeno religioso em si, ou resultar em um monismo: o monismo da religião politicamente correta e fofa. A liberdade de abraçar e espalhar crenças religiosas é fundamental e não deve ser comprometida. Qualquer interferência extrema resultaria na supressão da religião e na violação da dignidade dos fiéis que a seguem. É crucial entender que é impossível exigir a incorporação de valores de uma doutrina rival sem descaracterizar ou interferir na própria fé. No cristianismo, por exemplo, a liberdade de proclamar e expressar a crença é vivida com paixão devido à história e aos princípios centrais dessa fé.

Um caso histórico: Cantwell v. Connecticut

Uma decisão internacional importante, que é um dos julgados-referência na Suprema Corte norte-americana e destaca os conflitos entre religiões, é Cantwell v. Connecticut. Nesse caso, os Cantwell, membros das Testemunhas de Jeová, estavam realizando pregações em um bairro predominantemente católico em New Haven, no estado de Connecticut. Nas pregações, declaravam as outras religiões como inimigas, em especial a Igreja Católica. A Suprema Corte, em decisão unânime, afirmou que eles estavam protegidos pela Primeira Emenda da Constituição, reforçando a importância de preservar a liberdade religiosa.

Conclusão 1: o valor fundamental da liberdade religiosa

Em um mundo diversificado em termos de crenças, é essencial reconhecer e preservar a liberdade religiosa como um direito fundamental. Isso implica respeitar tanto a liberdade de acreditar quanto a liberdade de agir de acordo com essas crenças, desde que não haja danos à sociedade sob o ponto de vista objetivo, conforme decisões do STF (RHC 134682, HC HC 82424), da Suprema Corte americana (Cantwell v. Connecticut) e as diversas decisões internacionais, como as Resoluções 1510 e 1805 do Parlamento Europeu e o Plano de Ação de Rabat, entre tantos outros documentos internacionais que você encontra no excelente artigo “Criticar o sagrado do outro é um direito fundamental”, de nosso confrade de IBDR Guilherme de Carvalho.

Permitir que o Estado interfira nos dogmas religiosos e em questões espirituais coloca em risco a própria essência da religião, podendo eliminar o fenômeno religioso em si, ou resultar em um monismo: o monismo da religião politicamente correta e fofa

Por exemplo, o Plano de Ação de Rabat, de 2012, sobre a proibição da incitação ao ódio nacional, racional ou religioso, que integra o relatório anual do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, definiu: “O direito à liberdade de expressão implica que precisa ser possível escrutinizar, debater abertamente e criticar sistemas de crença, opiniões e instituições, incluindo religiosas, desde que não se advogue ódio que incite à violência, hostilidade ou discriminação contra um indivíduo ou grupo de indivíduos”. A restrição à liberdade de pregar, ensinar e expressar dogmas está na ilegalidade de condutas que incitem à violência, hostilidade ou discriminação contra um indivíduo ou grupo de indivíduos, e discriminação implica em inferiorização de pessoas, nunca de sistemas ideológicos, filosóficos e religiosos, somada à supressão de direitos fundamentais. O que não se enquadrar nisso não pode ser restringido.

Conclusão 2: quando a verdade é outra

A história e a jurisprudência deixam claro que a supressão dos direitos das pessoas religiosas de pregar ou disseminar suas crenças religiosas é inaceitável, e a proteção desses direitos é essencial para a coexistência pacífica em um mundo cada vez mais diversificado em termos de religiões e crenças.

Dito em miúdos: você pode não gostar ou ficar extremamente chateado que um pastor, por exemplo, ensine, em um culto, que sua religião é de demônios. Mas processá-lo é contra tudo que se conhece em matéria de direitos humanos, e aproxima-se muito mais do discurso de ódio que as falas do próprio pastor, pelo simples fato de que o pastor está ensinando, em sua igreja, sobre religiões, enquanto você o estaria processando diretamente para suprimir o direito dele de ser religioso e viver segundo aquilo em que ele acredita. Se por um lado ele ofende a religião de forma genérica, por outro você tentaria usar o Estado para suprimir o direito pessoal dele (e também o dos fiéis da igreja) de ter uma religião. Sem falar que, hoje, é você quem está pedindo que o Estado interfira nos conceitos espirituais dos outros. Amanhã, alguém, usando essa jurisprudência, poderá pedir para que o Estado interfira nos seus.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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