Isto é muito importante de entender. A supressão de um direito humano para a preservação de outro só seria possível se: a) existisse hierarquia entre os direitos fundamentais ou b) existisse hierarquia entre pessoas humanas, isto é, em razão do meu gênero, cor, etnia, posição social ou sei lá o quê, sou melhor que você, e por isso o meu direito fundamental deve prevalecer e o seu ser suprimido. Seria um absurdo.

A posição “a” não é aceita pela doutrina e tratados internacionais de direitos humanos, como já dito; e a posição “b” é altamente discriminatória e, por si só, absolutamente inviável. Então, o que nos resta? Equilibrar proporcionalmente os direitos colidentes para que ambos permaneçam existindo, sendo exercidos no caso concreto.

É vital preservar os direitos fundamentais em qualquer cenário, mesmo desafiador. Eles existem para proteger a dignidade humana, originando-se após as guerras mundiais para evitar supressões em tempos de conflito. Isso é o cerne da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Nenhum direito fundamental é melhor ou mais importante que outro; todos são parte de um sistema coeso de liberdades e garantias que sustentam a força motriz de qualquer sistema constitucional: a dignidade da pessoa humana

Contudo, no Brasil tem sido diferente. Com o pretexto de que a tua liberdade termina quando começa a minha, os direitos fundamentais decorrentes das liberdades de crença e religiosa estão em risco como nunca estiveram, e a situação só se agrava.

Vamos à liberdade religiosa, por exemplo. Quando existe uma colisão de direitos fundamentais e de um lado está a liberdade religiosa, imediatamente, para muitos, é ela que deve ser suprimida. A necessária harmonização de ambas as liberdades colidentes, por meio de um balanceamento em que, proporcionalmente, ambas são restringidas, preservando-se seus conteúdos essenciais, é deixada de lado. Vigora o mantra de que a liberdade religiosa não é absoluta – mas a outra, que colide com ela, é! Pois suprime-se apenas a liberdade religiosa em razão da superioridade da outra, como se isso fosse possível.

O discurso de ódio, por exemplo, seria o grande limitador da liberdade religiosa. Todavia, esse só pode ser tal limitador quando o discurso é discriminatório; e um discurso só é discriminatório quando o orador se diz superior a outra pessoa, que, em razão disso, deveria ter seus direitos eliminados ou suprimidos (vide o caso Ellwanger no STF). Na verdade, o discurso de ódio é proferido por aquele que quer limitar a fala do religioso para ter seu direito preservado. Ora, considerar seu direito superior e, em razão disso, suprimir o direito do outro é que é discurso de ódio!

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O religioso, ao dizer que sua religião é melhor ou que determinada prática é pecaminosa, não está dizendo que ele, enquanto pessoa, é melhor que o outro; tampouco está suprimindo o direito fundamental do outro. Ele apenas está vivendo conforme sua fé, sem impedir o outro de viver conforme quiser.

Dizer que certa prática é pecado não possui o condão impositivo – como se lei fosse – de impedir outra pessoa de praticá-la. Seria impositivo se o religioso ingressasse com uma ação na Justiça para que não se pudesse mais praticar tal ato. Mas o contrário tem acontecido – e muito!

O impedimento de que o fiel viva e defenda os preceitos de sua crença mediante o Poder Judiciário ou por leis já tem se tornado realidade no Brasil; essa, sim, é uma prática altamente discriminatória. Se não existe hierarquia entre direitos fundamentais e entre pessoas, e se o direito de viver minha vida conforme meus dogmas colide com o seu de viver conforme os seus, por que apenas o meu deve ser suprimido? Procurar a Justiça para suprimi-lo é uma forma de discriminação.

Vigora o mantra de que a liberdade religiosa não é absoluta – mas a outra, que colide com ela, é! Pois suprime-se apenas a liberdade religiosa em razão da superioridade da outra, como se isso fosse possível

A colisão entre o meu direito fundamental de dizer que certas práticas são pecados e o teu direito fundamental de ignorar o que estou a dizer, e viver conforme quiseres, está na necessária convivência no espaço público. Podemos discordar frontalmente sobre dogmas, cosmovisão de mundo e maneiras de viver a vida, mas sem discriminar um ao outro, ou seja, podemos considerar nossas cosmovisões superiores, mas nunca pensar que somos humanos superiores – e, principalmente, jamais tentar eliminar o direito fundamental do outro.

Nosso esforço diário deve ser o da convivência e jamais o da eliminação ou supressão do direito fundamental do outro. Conviver em discordância, mas de forma solidária. O termo “solidariedade” – que vem do francês solidarité – significa se identificar com o sofrimento do outro; dispor-se a ajudar a solucionar ou amenizar o problema. Para ajudar o outro não podemos e não devemos renunciar à nossa identidade, inclusive religiosa, até porque é a nossa identidade, inclusive religiosa, que nos impulsiona a ajudar o outro.

Chega de mantras civis: o meu direito fundamental de crer e viver segundo minha crença é tão importante quanto o seu direito fundamental de viver a vida conforme sua visão de mundo. Se um dia eles colidirem no tráfego da vida, nosso desafio será de manter o diálogo e a convivência sem abrir mão de uma vírgula do que acreditamos. Isto é viver com dignidade!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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