A virtude da laboriosidade pode e deve ser conquistada na vida real, não em simulações lúdicas. O lúdico tem o seu lugar, especialmente no caso de crianças e adolescentes, mas não se pode substituir o trato com o real por ele. E, evidentemente, como com qualquer outra virtude, é de pequenino que se torce o pepino. Uma criança ou adolescente que não trabalhe está deixando de lado uma oportunidade de ouro. Todo trabalho deve estar de acordo com a pessoa que o desempenha, e no caso de crianças e adolescentes há obviamente exigências maiores: o estudo, por exemplo, deve sempre continuar a desempenhar um papel importante na vida do pequeno trabalhador, ao contrário do que ocorre com a maior parte dos adultos. Do mesmo modo, assim como não se contrata uma mulher de um metro e meio e 45 kg para descarregar caminhões de cimento, não se deve jamais fazer com que crianças e adolescentes sobrecarreguem seus corpos em formação com excessivas exigências físicas.
Isso tudo é evidente, ou deveria ser. E é isso que a legislação deveria tentar proteger (digo “tentar”, porque leis não constroem a realidade; achar que elas o façam é na verdade um pensamento supersticioso e beirando o idolátrico, por atribuir poderes a meras palavras escritas num papel). Proibir totalmente o trabalho de crianças e adolescentes, todavia, é simplesmente absurdo. Já publiquei neste mesmo espaço, em 29 de dezembro de 2011, um artigo em que contei sobre uma mocinha – na época minha aluna – que quase foi contratada para trabalhar em um hotel, mas não pode sê-lo por questões de idade. Teria sido uma excelente oportunidade para ela, que acabou, contudo, tendo de esperar, e acabou seguindo outro caminho. Hoje ela é professora de Inglês, outra atividade nobre (que eu mesmo comecei a desempenhar ainda menor de idade…). Mas será que, se tivesse conseguido aquele emprego, ela não teria encontrado sua vocação real? Jamais saberemos, porque uma lei triste e iníqua a impediu de trabalhar então.
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O trabalho não deve ser outra coisa que não o seguimento de uma vocação. Devemos fazer aquilo que somos chamados a fazer, aquilo que acabamos por perceber termos sido feitos para fazer. Eu mesmo, quando novo, cheguei a querer viver de música. Péssima escolha, aliás: músico é provavelmente o profissional que mais dedica seu tempo e dinheiro (um oboé decente está na faixa dos cinco dígitos, por exemplo, e um bom músico estuda oito horas por dia ao longo de anos) para receber o menor pagamento. Mas acabei me encontrando num nicho ecológico, por assim dizer, relativamente amplo, ao descobrir que o que melhor faço é entender e explicar, oralmente ou por escrito. Tudo o que já fiz na vida de bom foi assim, seja como tradutor, ensaísta, perito criminal, professor…
E comecei a dar aulas e a traduzir ainda adolescente. Ilegalmente. Mas foi isso que me fez criar o hábito do trabalho, de tal forma que hoje, aposentado, não fico jamais parado: estou escrevendo (meu terceiro livro está prestes a sair), aprendendo piano, começando a gravar música etc. É a virtude da laboriosidade que me foi firmemente implantada pelo hábito do trabalho desde moleque. Já o jovem que é proibido de se dedicar ao trabalho terá enormes dificuldades em construir em si esta virtude, em fazer do trabalho um hábito. O trabalho para ele poderá vir a ser sempre algo penoso, desagradável, até por ter sido apresentado tardiamente a ele.
A criança ou adolescente precisa aprender a se disciplinar, a construir algo, a ir além do que ele mesmo é naquele momento. Numa pessoa em construção, como são as crianças e os adolescentes, é fundamental que haja o exercício do trabalho, para construir em si a virtude correlata da laboriosidade. O dinheiro é mero bônus; o importante é que ele se acostume a trabalhar. Muitos dizem que o trabalho dele deve ser apenas o de aprender o que a escola ensina. É outra besteira, primeiro porque há uma enormidade de coisas que a escola não ensina. É por isso que há cursos de línguas, por exemplo, ou clubes de xadrez. Em segundo lugar, é sempre uma minoria que há de viver do estudo. Hoje em dia isso ainda significa, no mais das vezes, uma carreira acadêmica. Para cada professor universitário, entretanto, deve haver centenas de pedreiros, motoristas, mecânicos, engenheiros e outros profissionais que estudaram o que lhes convinha e depois foram aplicar aquilo no mundo real. O estudo, para a maioria das pessoas, é apenas uma preparação: aprende-se a ler e escrever, a fazer contas e tudo o mais, para que se possa conviver em sociedade. Porém o estudo não é, para a maioria, um fim em si mesmo. E, mais ainda, não é a vocação da pessoa. Meu compadre não conseguiu terminar o ensino médio, que ele achava difícil e desagradável. Descobriu-se dotado, no entanto, de enorme capacidade de vendas. Hoje ele é vendedor, e creio que ganhe mais que eu, com minhas sete línguas e milhares de livros.
Para a pessoa que não tem a vocação do estudo, a escola é trabalhosa, mas não é – no bom sentido do termo – trabalho real. É uma chatura necessária, e só. Algo semelhante a fazer exercícios físicos: algo necessário, mas que não é nem agradável nem, muito menos, uma vocação. Ela há de se encontrar fazendo outra coisa. Aprendendo como consertar motocicletas ou carros, por exemplo, ao laborar como aprendiz numa oficina. Mas a absurda lei o impede. Ainda que um molequinho de 10 anos seja tremendamente útil numa oficina de consertos de motocicletas ou carrinhos de cortar grama, a ele não é permitido fazer algo que o fascinaria e ainda daria um dinheirinho. Este é o verdadeiro crime: aquela criança está privada da oportunidade de construir em si a virtude da laboriosidade, de colocar em prática o que pode perfeitamente ser a sua vocação.
É mais que uma falácia; é um crime confundir o bom trabalho infantil com o abuso infantil. É como se se asse a usar a expressão “trabalho feminino” para a prostituição, que é um abuso contra a mulher
Os filhos muitas vezes, por via da genética e da criação, interessam-se pelo trabalho dos pais. Eu sonho em construir aqui onde moro um centro de estudos – uma espécie de pousada com sala de aula, que só abrirá para cursos intensivos. Ele há de ter uma lojinha, para vender produtos da região e materiais ligados ao curso do momento. É um sonho antigo. Minha filha, desde os 10 aninhos de idade, sonhava em trabalhar na tal lojinha. Seria ilegal, mas certamente eu o teria não só permitido, mas incentivado.
É mais que uma falácia; é um crime confundir o bom trabalho infantil com o abuso infantil. É como se se asse a usar a expressão “trabalho feminino” para a prostituição, que é um abuso contra a mulher. Turvar as águas desta maneira, distorcendo o santo nome do trabalho para que ele signifique o oposto do que realmente é, não pode ajudar em nada o diálogo sobre algo que é muito importante. Há quem queira a legalização da maconha. Há quem deseje que as rinhas de galo voltem a ser permitidas. São meros gostos pessoais que se veem em conflito com a legislação positiva. Mas o trabalho das crianças e dos adolescentes, evidentemente em condições compatíveis com sua situação de pessoinhas em formação física, moral e intelectualmente, é algo necessário para a sociedade, e que uma lei iníqua proíbe.
Se a criança e o adolescente não podem trabalhar, eles são impedidos de formar em si uma virtude importantíssima para elas e para a sociedade como um todo. Trabalhamos para a sociedade, não para nós mesmos. Trabalhar, assim como ter filhos, é ser membro ativo da sociedade. Negar esta oportunidade justamente àqueles que estão em formação e por isso precisam exercitar ao máximo as virtudes que os tornarão bons cidadãos é uma obscenidade antissocial. É uma lei iníqua, que deveria ser revogada o quanto antes.
E, claro, se alguém abusar de crianças ou adolescentes, que vá em cana. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Que nunca mais haja abuso infantil, e viva o trabalho infantil!