Deus Nosso Senhor nos instou a vê-l’O, Ele mesmo, no pobre, no faminto, no sedento, no nu, no preso. E é por vê-l’O e ao vê-l’O que nasce o labor cristão neste mundo, que informa o “sonho” social para a Amazônia. O doce Cristo na Terra, com razão, denuncia a visão “extrativista” tanto de quem vê o homem como um obstáculo no caminho da exploração dos recursos naturais quanto de quem o vê como um obstáculo no caminho da preservação da suposta natureza intocada (ou, o que talvez seja ainda pior, coisifiquem o índio ao colocá-lo como mais ou menos equivalente a araras ou tatus, fazendo parte da tal “natureza”, não da humanidade predadora). Assim, qualquer projeto de ação para a Amazônia deve, antes de qualquer outra coisa, ser um projeto de ação para com os homens que ali vivem, para levar a eles não a negação de sua humanidade subjacente nos projetos modernos e pós-modernos, mas a reafirmação de sua dignidade humana, decorrente da Encarnação do Verbo e a Ele conducente.

E daí a ele para o próximo “sonho”, que é o cultural. Trata-se de uma breve apresentação de algo que é esquecido no meio dos delírios que mencionei mais acima: a Amazônia não é uma coisa só. Há tantas Amazônias humanas quanto as há climáticas ou ambientais. A vida de quem vive à beira do grande rio não tem muito a ver com a de quem vive em montanhas cobertas de névoa mais ao norte, por exemplo. E cada uma dessas culturas apresenta aspectos dignos de nota por representarem “seminae Verbi”, sementes do Verbo: aspectos culturais que preparam ao recebimento da mensagem do Evangelho. Muitos destes, aliás, preparam não por serem semelhantes aos carregados pela nossa cultura já infelizmente em grande medida pós-cristã, mas justamente por não terem caído nos erros modernos que a tornaram pós-cristã. São, por exemplo, os aspectos comunitaristas no sentido preciso do termo – que não pode jamais ser confundido com o coletivismo de multidões da extrema-esquerda, que nega as diferenças locais e busca enfiar a todos num leito de Procusto ideológico –, o respeito à voz dos anciãos, à dignidade de mulher etc. Evidentemente, havendo muitas culturas, há muitos graus de erro e de acerto em cada uma delas; todas, todavia, mesmo por serem todas necessariamente frutos da mesma natureza humana que o Verbo assumiu e que por Ele clama, apresentam-se de alguma maneira preparadas para Seu anúncio, por vezes mais preparadas que a sociedade pós-moderna, que O ouviu e O esqueceu.

a, então, o texto magisterial ao “sonho” ecológico. É uma apresentação clara e nítida da doutrina cristã acerca do nosso papel de custódio da Criação, deixando no caminho os escombros dos delírios do ultraconservacionismo, lado a lado com os de seu irmão gêmeo, o pesadelo moderno da Criação como mera fonte de recursos a explorar em breves escalas rumo ao lixão até que acabem, em benefício do pseudoconforto material do consumismo. São duas pragas gêmeas, dois erros graves que, inclusive, apresentavam-se a cada momento nos gritos dos modernistas de esquerda e de direita ao longo do sofrido Sínodo. Uns a pregar índios de iPhone na Bolsa de Valores, e outro a deixá-los nus e expostos a todo tipo de praga e endemia, abandonados à mais negra idolatria nas florestas obscuras. É interessante, inclusive, perceber como esta apresentação vem a complementar, por ter exemplos mais claros por localizados, a exortação que já nos fora feita pelo mesmo sumo pontífice na magistral Laudato Sì.

E a revelação cristã que os povos amazonenses merecem e esperam. É pelo batismo que anseiam em seus mergulhos nas turvas águas de seus rios

E, finalmente, completando o magnífico edifício, o ponto principal, central, crucial: o “sonho” eclesial. É a mais perfeita negação do bestialógico vomitado pelas diversas seitas modernistas ao longo do Sínodo (incluindo aqui o dos próprios padres sinodais infelizmente a ela vendidos, pois Judas sempre teve seguidores e herdeiros infiltrados no tecido eclesial). É uma exortação franca e aberta ao anúncio do Evangelho, ao anúncio do Cristo, à pregação e recurso aos sacramentos. Claro, não fala nada de padres casados; ao contrário, até: insta os senhores bispos a rezar e mandar rezar pelas vocações boas, sérias, castas, santas, e a mandar missionários para a Amazônia, que por vezes absurdamente recebe menos missionários que a Europa ou os Estados Unidos, e isso da parte de dioceses daquela mesma região!

Evidentemente, não poderia também deixar de ser uma necessária aula do que seja realmente a inculturação proposta novamente pelo Concílio Vaticano II, mas já praticada desde que a Igreja saiu do Cenáculo. “Inculturar” não é enfiar funk carioca (ou tambores tribais) na liturgia, e sim perceber perfeita e claramente o que há de correto e de santo nas sementes do Verbo presentes em cada cultura e fazer com que floresçam estes aspectos, dando-lhes o seu pleno sentido, que só poderia vir à luz da Revelação Cristã. É inculturar, por exemplo, receber das culturas pagãs europeias e nelas santificar a beleza do símbolo matrimonial expresso nas alianças de casamento, como a Igreja fez séculos atrás. E é inculturar, do mesmo modo, perceber os sinais da Verdade já presentes nas diversas culturas locais, nas festas tradicionais e demais manifestações que, na realidade, são formas pelas quais homens bem-intencionados tentam, aos trancos e barrancos, render homenagem ao que conseguem perceber duma Verdade eterna que só se revela no Cristo Jesus. E é esta a revelação que os povos amazonenses merecem e esperam. É pelo batismo que anseiam em seus mergulhos nas turvas águas de seus rios. É o Cristo que nos chama a anunciá-l’O a todo e cada um dos habitantes daquela vasta região, sem querer nem fazer deles operadores de bolsa de valores nem tatus ou lagartixas.

São, sim, homens como nós, chamados como nós à mesma santidade, e que nos trazem ainda a bênção de visões que por vezes, na decadência final de nossa cultura, esquecemos. E é a evangelizá-los, todos e cada um, que o Santo Padre nos chama. Acolhê-los plenamente não apenas no seio da Mãe Igreja, dando-lhes o bom alimento da sã doutrina, a cura espiritual dos sacramentos, mas também na dignidade plena de seres humanos, tendo sua cultura purificada, não eliminada; suas tradições santificadas, não devastadas; sua terra fertilizada, não exaurida. É a isto que o bom papa Francisco nos exorta. E, nisso, como de hábito, como sempre ocorreu nestes quase 2 mil anos de papado, nada mais faz ele que repetir as palavras de Cristo: “lançai as redes!”.

Que o bom Deus guarde nosso pontífice, e o faça viver tanto ou mais que Pedro!

Use este espaço apenas para a comunicação de erros