A despeito dos sonhos e fantasias de seus adoradores, os militares são isso mesmo, um “deus non salvans” (em latim fica bem mais legal; “não salvante”!). Fosse salvante esse deus lá do povo da camiseta da CBF, ele teria impedido que o Brasil caísse nesta vala séptica em que ora se encontra. Teria impedido que a Constituição – por pior que seja – fosse rasgada. Teria dado mais atenção à manutenção da realidade prática do Estado de Direito que à elegância com que ele foi destruído. Nada fizeram, e só farão algo daqui para a frente se forem ainda mais incompetentes que parecem. Quando se pensa que provavelmente há de haver promoções em massa para ganhar o favor do oficialato assim que a caneta oficial estiver nas mãos do Escolhido dos Critocratas, fica ainda mais não salvante o deus dos pobres desesperados acampados diante de seus santuários verde-oliva.
Isto, contudo, não significa que o PT conseguirá criar a ditadura do proletariado que alimenta as fantasias onanísticas de seus quadros. Pelo contrário, aliás. Se o Bolsopresidente era um governante fraco, que só ganharia alguma força agora, quando o relativo sucesso de seu governo elegeu um Congresso afinado com ele, mais fraco ainda há de ser o PT. A direita brasileira acordou, para o bem e para o mal. Ainda que eu, pessoalmente, não morra de amores nem pela direita nem pela esquerda – que diferem principalmente nos pecados de estimação –, é inegável que uma enorme parcela do eleitorado brasileiro finalmente ganhou representação. Uma fatia bem maior que a que se alinha com a esquerda, aliás, que só tem apoio ideológico real numa pequena parcela da classe média urbana. Quando à direita se somam os pouquíssimos conservadores ativos na política, tem-se uma pedra bem no meio do caminho da esquerda, pronta para provocar topadas, entorses e claudicações inesperadas de todo tipo. O único jeito de contornar tal situação é jogar ainda mais fora das regras, violar ainda mais os trapos a que já se reduziu qualquer devaneio de ordem constitucional no país. E isso, por sua vez, como já apontei acima, aumenta o desespero e a fúria de uma direita numericamente superior em meio à população brasileira.
O Estado Critocrático de Esquerda é, até mesmo nesta definição que lhe dei, um barril de pólvora pronto para explodir. O Estado há de ser mais critocrático ou mais de esquerda? Quem vai mandar em quem? Os critos serão por muito tempo o único crata? Não é nem um pouco improvável que em breve, muito breve, surja alguma disputa em que os critos estejam de um lado e os cratos do outro, em que o Executivo não queira executar o que parece bom aos critocratas, ou vice-versa. Quem vai ganhar?
Mais ainda: todo o sonho delirante em que se finge que o Apedeuta foi eleito por votação unânime da população brasileira depende de até que ponto se conseguirá manter a aparência de democracia para inglês ver. Um AI-5 disfarçado a, mas se for necessário botar algo no papel (esse outro “deus não salvante” de devoção da gringa) a coisa vai ficar feia, e o apoio incondicional que a (fantasiosa) fama do Lula lhe vale no exterior vai ser fortemente abalado. Mais ainda: não basta ter o Planalto e o STF (e a mídia comprada, claro; fortuna digna de um Ali Babá já foi prometida às emissoras para comprar-lhes o apoio incondicional) se não se tem como fazer valer as muitas ordens tão mal dadas. A desconfiança em relação à própria segurança da Presidência, que vai ser tirada do Gabinete Militar, já mostra claramente o problema. Quem a fará, os Gaviões da Fiel? O quadro de segurança institucional não é o problema, veja bem meu solitário leitor, mas a dificuldade que se tem em garanti-lo institucionalmente mostra claramente os limites do poder de fato de quem tem duas canetas e 1 milhão de microfones, mas não muito mais que isso.
É fácil conseguir uma minoria de agentes carreiristas nesta ou naquela instituição que estejam dispostos ao que der e vier e apostem a carreira (e, no médio e longo prazo, a liberdade) no apoio aos poderosos do momento. Estes servem perfeitamente para prender um deputado de cada vez, mas já seria difícil conseguir número suficiente para encarar grupos mais robustos de gente desesperada, com prova a persistência dos bolsoacampamentos (já qualificados de “organizações criminosas”, aliás) e a própria destruição do Estado de Direito é o que faz com que cresça mais e mais o número dos desesperados. Do mesmo modo, se o projeto petista de esvaziamento das funções institucionais das Forças Armadas for adiante, com a criação de uma Guarda que assumiria muitas das atuais funções do Exército e outras gracinhas, o interesse institucional pode levar os generais a fazer o que seu suposto patriotismo e risível apego ao Estado de Direito não fizeram. Mais ainda se não ganharem muitos brinquedos novos do Papai Noel de nove dedos: tanques, aviões, barcos, drones, que sei lá eu.
O Bolsonaro nunca deixou de ser, aos olhos do alto oficialato (o baixo é bolsonarista), uma figura dúbia. De um lado, casavam bem em suas preocupações de centro-esquerda, como um projeto desenvolvimentista. Por outro, ele ou por cima deles com muitas medidas liberais, como a eliminação de privilégios militares sem sentido na legislação de armas (esta o PT pretende reverter, por outras razões) e, claro, medidas econômicas várias que vão contra a visão de mundo do pessoal da Escola Superior de Guerra. O PT, por outro lado, está lotado de gente que os militares consideram inimigos e que, por sua vez, está se coçando para implementar um revanchismo que felizmente até agora não aconteceu no Brasil. A sôfrega loucura do poder, a hybris que vem dominando a esquerda e a critocracia antes mesmo da oficialização da conquista do que resta do Planalto, no entanto, pode perfeitamente levá-los a achar que conseguem “se dar bem” em cima das Forças Armadas. É provável que, na sua forma peculiar de egocentrismo, não se deem conta de que chegaram lá não por força própria ou desejo popular, mas pelo interesse do alto oficialato em evitar a impressão internacional de que desejam retornar aos anos 1970, ainda que nessa o Estado de Direito tenha tombado exangue à beira da estrada.
Não precisamos ter medo de uma ditadura do proletariado, mas temos todas as razões do mundo para crer que a tentativa frustrada de instaurar uma há de causar vastas perdas e danos
Teremos de apertar os cintos, em ambos os sentidos da expressão: por um lado, o fato de o Brasil ter sido um dos poucos países a sobreviver quase ileso à Covid não o torna imune a, sob nova istração, falir ao ter de bancar um Estado dinossáurico, bolsas-esmola mil para compra do voto dos miseráveis e, ainda por cima, o pão de cada dia das demais ditaduras de esquerda latino-americanas, ansiosamente aguardando a generosa mesada que o Erário tupiniquim voltará a lhes dar. Por outro, essa tremenda quantidade de complicações faz com que seja praticamente certo que tenhamos tempos tremendamente turbulentos pela frente. Conflitos entre o (por ora) Desejado dos Critocratas e os próprios; o desespero das vítimas de ambos; os interesses divergentes dos quadros do PT e do alto oficialato; a destruição da economia (Haddad?! Sério??!!); a fantasia por parte da esquerda de que desta vez abocanharam não apenas o governo mas o poder, quando têm muito menos de um e do outro; a ressurreição da direita popular, que pode ter seus líderes perseguidos, mas é grande demais para voltar a ser calada; a instabilidade institucional não só brasileira, mas mundo afora, com sérios riscos de quebras sistêmicas de mercados e de acordos...
Não precisamos ter medo de uma ditadura do proletariado, mas temos todas as razões do mundo para crer que a tentativa frustrada de instaurar uma há de causar vastas perdas e danos. Quem mais há de sofrer, como sempre, são os mais pobres, os mais fracos: aposentados, trabalhadores informais, grupos identitários usados como bucha de canhão pela esquerda, pequenos agricultores e pequenos empresários. Em um distante segundo lugar, há de ser bem penoso para quem levante a cabeça e declare posição numa política que cada dia mais tende a ser uma briga de foice no escuro. Quem está hoje por cima da carne-seca estará amanhã mais por baixo que barriga de jacaré, e vice-versa. No fim dessa confusão toda terão sido tantas reviravoltas, tamanha destruição do que ainda resta de ordem democrática, que dificilmente escaparemos de uma destruição tão completa da legitimidade e da autoridade do Estado, que nem temos como conceber ainda que forma terá a organização política brasileira em uma ou duas décadas.
Apertemos, assim, os cintos; é só o que nos resta fazer.