O evento chamado pelos israelenses de Independência de Israel é conhecido pelos palestinos como Nakba, “catástrofe” em árabe – portanto sinônimo de Shoá, “catástrofe” em hebraico, que é como o Holocausto é conhecido nessa língua.

O ambientalismo a serviço do negacionismo

Obviamente, os palestinos querem o direito a voltar para casa. Gaza tem uma densidade populacional maior do que a de Tóquio, em parte, por ter recebido os refugiados da Nakba. Assim, além de explodir as casas, o FNJ transformou grandes conjuntos de vilarejos em reservas ambientais: plantaram bosques de pinheiros, para dar um ar europeu à região, e posam de grandes ambientalistas, mesmo que tenham destruído quase toda a vegetação nativa.

O esforço ambientalista foi acompanhado pelo esforço acadêmico de fabricar uma origem judaica para as localidades. As ruínas de um kibbutz que deu errado e as de um prédio antigo de origem desconhecida são apresentadas, nas plaquinhas do parque natural, como ruínas judaicas de tempos bíblicos e talmúdicos. Os hipsters vão lá para relaxar e plantar legumes bíblicos e talmúdicos nos “pulmões verdes” de Israel.

As frutíferas que restaram são testemunhos dos bustans dos palestinos, mas são apresentadas nas placas dos parques como selvagens. Segundo Ilan Pappé, além de ocular os vilarejos e impedir (com lei ambiental) que os palestinos sonhem em voltar para lá, os parques ambientais construídos pelo homem têm a função de corroborar o mito sionista segundo o qual a Palestina era um deserto que os judeus fizeram florescer.

Ilan Pappé explica que os sionistas têm uma verdadeira engenharia social, e a maioria dos judeus israelenses acredita piamente nessas coisas. Ele mesmo manifesta vergonha por não ter identificado ruínas de vilarejos antes, perto de sua casa. Às vezes os restos dos vilarejos estão bem na vista, como a casa de um mukhtar que foi transformada na casa dos professores da Universidade de Tel-Aviv.

Pappé diz que, se as universidades de Israel fossem sérias, estariam calculando quanto que têm que devolver aos refugiados palestinos. Como vimos com Norman Finkelstein, um problema legado pelo nazismo é o da restituição do dinheiro das vítimas do Holocausto que ficou nos bancos ou foi confiscado (e os ongueiros deitaram e rolaram). Os palestinos têm um problema similar: “o retorno ou o reassentamento [dos palestinos] não eram os únicos assuntos. Também havia a questão do dinheiro expropriado de 1,3 milhão de palestinos, ex-cidadãos da Palestina do Mandato, cujas finanças estavam investidas em bancos e instituições, que foram todas tomadas pelas autoridades israelenses depois de maio de 1948” (p. 247).

O FNJ e o problema demográfico

Quando a Palestina foi conquistada, a esmagadora maioria das terras foi para o FNJ. Este costumava fazer duas coisas com grandes lotes: destinar as terras para kibbutzim ou para parques ambientais. Além da função negacionista, essa segunda escolha tem uma outra função muito importante: Israel quer se legitimar alegando ser um regime democrático. O sionismo só se mantém numa sociedade democrática se os nativos compem uma minoria. Por isso, eles precisam induzir a migração e a natalidade – mas não dão conta, já que os poucos palestinos que conseguiram cidadania em Israel (os “árabes israelenses”) têm natalidade superior. A solução tem sido, ao menos em parte, o movimento de proselitismo judaico, inédito em tempos modernos, que faz com que gente como esses bôeres da África do Sul se convertam ao judaísmo e ganhem o direito de “voltar” para Israel.

Vou citar um trecho que dá uma ideia do clima da opinião de Israel na década de 70: “A desjudaização [de certos vilarejos] era parte de uma batalha em curso, feita por Israel contra a ‘arabização’ da Galileia – na visão de Israel. Em 1976, o funcionário mais alto do Ministério do Interior, Israel Koening, chamou os palestinos da Galileia de ‘câncer no corpo do Estado’, e o chefe do estado-maior israelense, Raphael Eitan, abertamente referiu-se a eles como ‘baratas’” (p. 223). Não acreditem em mim, perguntem a Flávio Gordon quem costumava se referir a uma etnia como câncer no corpo do Estado pouco mais que 30 anos antes disso. A suposta unicidade do Holocausto, um dogma sionista, transformou os judeus num povo com carta branca para ser racista e deu a Israel carta branca para ser genocida. Se Israel jogasse uma bomba atômica em Gaza (como um ministro recentemente aventou e pouco veículo ocidental noticiou), choveriam colunistas e jornalistas de direita justificando, dizendo que Israel tem o direito de se defender (que aliás era um mantra de Obama). Gaza é um dos lugares mais densamente povoados do mundo, com uma alta e atípica proporção de mulheres e crianças. Quanto ao hábito de apontarem o aumento populacional em Gaza como prova de que não há genocídio, sugiro que leiam esta coluna de Thiago Braga sobre a fome na Ucrânia para pararem de repetir falácia soviética.

Mas voltemos a Pappé. Será que a sociedade israelense melhorou no século XXI? Não. Enquanto Pappé escrevia, os israelenses debatiam abertamente o “risco demográfico”. Pappé: “A limpeza étnica da Palestina que Ben-Gurion instigou […] garantiu que a quantidade de palestinos fosse reduzida a menos de 20% da população total do novo Estado judeu. Em dezembro de 2003, Benjamin Netanyahu reciclou as estatísticas ‘alarmantes’ de Ben-Gurion: ‘Se os árabes de Israel conformarem 40% da população’ – Netanyahu dizia – será o fim do Estado judeu.’ ‘Mas 20% também é um problema’, acrescentou. ‘Se a relação com esses 20% torna-se um problema, o Estado tem o direito de empregar medidas extremas.’ E não continuou o raciocínio” (p. 285).

A população endossa essa visão, e em 2006 Pappé dizia que quase todos os parlamentares israelenses se elegeu prometendo resolver “o problema demográfico”, à exceção de 10 membros de partidos árabes e dois “excêntricos judeus ashkenazi ultraortodoxos” (p. 285). Outra vez, que sociedade fanatizada e racista nos lembra essa história?

Para atender a esse tipo de anseio, em 2003 o parlamento “ou uma lei que proibia os palestinos de conseguirem a cidadania, a residência permanente ou mesmo ou mesmo temporária quando fossem casados com cidadãos israelenses. Em hebraico, ‘palestino’ sempre significa palestinos morando na Cisjordânia, na Faixa de Gaza ou na diáspora, de forma a diferenciá-los dos ‘árabes israelenses’, como se não fossem todos parte de uma nação palestina” (p. 284). Por isso, a polícia invadiu as casas dos “árabes israelenses” para fazer uma batida, prendeu 36 mulheres e deportou 8 para a Cisjordânia: “Algumas delas estavam há anos casadas com homens palestinos de Jaljulya, algumas estavam grávidas, algumas tinham filhos. Foram abruptamente separadas dos seus maridos e crianças” (p. 283).

Esse é um jeito de diminuir a presença árabe em Israel. Outro é pelo controle de terras: mais de 90% da terra em Israel é do Estado e está sujeita à regulação do FNJ, que proíbe a “venda, arrendamento e subarrendamento da terra a não-judeus […]. O objetivo primordial dessa legislação foi impedir os palestinos de de Israel de conseguir – por compra – a propriedade de suas próprias terras ou do seu povo” (p. 257).

Agora o leitor sabe

Diante dessa situação, o povo palestino só não se tornaria violento se fosse integralmente composto por anjos em vez de seres humanos. A solução proposta por Pappé é discutir a paz reconhecendo a Nakba, o direito dos palestinos ao retorno e a criação de um único Estado democrático que não discrimine os cidadãos. Caso isso não fosse feito, o futuro seria nefasto: “Os ataques de Israel a Gaza e ao Líbano no verão de 2006 indicam que a tempestade já está acontecendo. Organizações como o Hizbullah e o Hamas, que ousam questionar o direito de Israel a impor sua vontade unilateralmente sobre a Palestina, enfrentaram o poderio militar israelense e, até o momento, enquanto escrevo, estão conseguindo resistir às investidas. Mas isso está longe de acabar. […] o risco de um conflito e de um derramamento de sangue ainda mais devastadores nunca foi tão alto” (p. 296).

Por último, conto que a última coisa que fiz antes de sentar para escrever este texto foi ler a polêmica da Folha de S. Paulo entre Arlene Clemesha, professora de História Árabe da USP, e Leonardo Avritzer, cientista político da UFMG. Até onde eu saiba, os dois de esquerda. O texto dela foi de especialista e tratou da limpeza étnica como limpeza étnica. O dele foi uma empulhação na qual eu dei ctrl F para ver se ele falava de Pappé ou não. Não falava. A tréplica de Arlene Clemesha comentava justamente isso: ele ignora a decisiva pesquisa de Pappé.

O leitor agora sabe dos fatos apresentados. Só continua dando apoio moral à escalada possivelmente genocida da limpeza étnica se quiser.

VEJA TAMBÉM: