Conforme noticiou a Gazeta do Povo, "o PTB apresentou (...) uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) em que pede à corte a vedação da possibilidade da reeleição dos presidentes de Câmara dos Deputados e Senado. Pelas regras atuais, os presidentes das duas casas não podem se reeleger dentro de uma mesma legislatura - o que barra uma nova candidatura dos dois comandantes atuais, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ). Movimentações de bastidores, entretanto, indicam que estaria em curso uma articulação para modificar o regramento e autorizar a possibilidade de um novo mandato de Maia e Alcolumbre. O senador estaria buscando o apoio do Palácio do Planalto em sua empreitada”.
A ação foi atuada como ADIn 6.524.
Para que o leitor entenda, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o Congresso Nacional são dirigidos por suas respectivas Mesas. Cada mesa é composta por um Presidente, o maior cargo da Casa, dois vices e quatro Secretários.
Cada um desses cargos é ocupado por um parlamentar. A Constituição é absolutamente cristalina ao vedar a reeleição para o mesmo cargo consecutivamente.
Veja o art. 57, § 4º, da Constituição:
“§ 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente.”
A interpretação jurídica corrente é que o dispositivo só impede a reeleição consecutiva dentro de uma mesma legislatura. Isso porque o parágrafo mencionado trata da reunião das Casas “em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente”. Ou seja, a vedação à recondução seria aplicável apenas para eleição subsequente àquela que ocorre “no primeiro ano da legislatura”. A interpretação é razoável, não afeta direitos fundamentais ou princípios da República, de modo que é aceitável privilegiar-se a interpretação dada pelas Casas legislativas.
Quanto à reeleição dentro da legislatura, ela é obviamente vedada pela Constituição. Isso sempre foi tido como fato. E assim deve permanecer.
Não obstante, em virtude das movimentações de bastidores, uma artificial celeuma foi criada em torno do assunto. Alguns, contra toda lógica, aram a dizer que o dispositivo não é tão claro ou que sua aplicação seria duvidosa e que, talvez, o Regimento Interno pudesse permitir a reeleição.
Nessa linha, ao se manifestar no bojo da mencionada ADIn 6.524, a Advocacia do Senado alegou que se trataria de questão regimental imível de controle de constitucionalidade pelo STF. De modo ainda mais audacioso, o Senado afirmou que a regra que permite a reeleição para Presidente da República (art. 14, § 5º, da CRFB/88) seria aplicável às Mesas do Congresso.
Assombrosamente, a AGU também se manifestou no sentido de que se trata de questão interna da Casa (interna corporis). A Procuradoria-Geral da República apresentou parecer no mesmo sentido.
É um equívoco. A reeleição para o mesmo cargo de quaisquer das Mesas do Congresso é, indubitavelmente, vedada pela Constituição. Trata-se de questão regulamentada por regra específica da Constituição, o que impede a aplicação por analogis de outras normas. Ademais, por haver regulação expressa do tema no texto constitucional essa não é uma questão interna corporis.
Vejamos cada um desses pontos.
Em primeiro lugar, no que toca à aplicação de analogia, havendo previsão específica sobre as mesas do Congresso (art. 57, §4º, como vimos acima), não é possível o uso desse recurso.
Com efeito, a analogia é um instrumento utilizado no direito para resolver problemas jurídicos que não são objeto de qualquer regra específica. No jargão jurídico, chama-se a isso método de colmatação de lacunas. Ou seja, havendo uma lacuna (um vazio) no direito, isto é, uma questão não tratada pelas regras do ordenamento, há que se utilizar métodos para colmatá-la, isto é, para preencher esse vazio.
Esses métodos, no entanto, são subsidiários. Só se aplicam na ausência de regra específica.
Julgados do próprio STF são pródigos em repetir essa lição. Confira:
Os julgados tratam de matéria distinta, mas a lição de fundo está solidamente confirmada em nosso direito.
Portanto, como no caso da reeleição para as mesas do Congresso há regra clara e aplicável, não há como se lançar mão de analogia para fazer incidir a regra que ite a reeleição para Presidente da República.
No tocante ao segundo argumento, no sentido de que se trataria de questão interna corporis, é ele igualmente improcedente. De fato, só existe questão interna corporis quando a Constituição e a lei não tratam expressamente da matéria. Nesses casos, há liberdade para as Casas interpretarem o tema, sem que o Judiciário possa impor entendimento diverso. Do contrário, havendo regra expressa – como ocorre no caso concreto – as Casas não têm liberdade para contrariar a Constituição e as leis; e, se o fizerem, cabe intervenção judicial.
Para entender isso, é relevante aprofundar no que é uma questão interna corporis. Essa é uma nomenclatura que os tribunais instituíram para delimitar um espaço de insindicabilidade judicial, expressão usada no jargão jurídico para indicar temas em que o Judiciário não pode interferir.
As questões interna corporis são, assim, um exemplo de tema insindicável. Quando elas se configuram? Basicamente, há dois requisitos para isso: 1) tema interno do Poder Legislativo, por exemplo, processo legislativo ou organização interna dos órgãos; e cumulativamente, 2) ausência de regulação expressa na Constituição e nas leis.
Ou seja, no espaço que a Constituição e as leis deixaram para que o Legislativo cuidasse de seus assuntos internos, cabe a ele definir e interpretar as respectivas normas, sendo inviável a intervenção judicial.
Se algum desses dois requisitos não estiver presente, não se trata de questão interna corporis.
A primeira vez em que isso foi decidido pelo plenário do STF, após o advento da Constituição de 1988, foi na Suspensão de Segurança nº 327. Lá, essas lições já foram fixadas. Basicamente, o STF afirmou que as regras de tramitação de emendas constitucionais que não estejam fixadas na Constituição e nas leis configuram questão interna corporis e, por isso, seriam insindicáveis judicialmente.
Confira a ementa:
Isso foi repetido em dezenas de julgamentos posteriores. Vejamos alguns dos mais recentes:
Daí se percebe que, quando a questão se referir exclusivamente a normas regimentais, será descabida a intervenção judicial. Por outro lado, se houver fundamento constitucional, ainda que a regra também seja tratada pelo regimento interno, caberá intervenção no tocante aos pontos regulados diretamente na Constituição.
Como no caso em discussão há clara vedação constitucional à reeleição consecutiva para os mesmos cargos das mesas do Congresso, o tema é sim ível de análise judicial. As Casas do Congresso não têm liberdade para violar a Constituição.
Frise-se que o fato de a norma constar do Regimento Interno, por óbvio, não a transforma em questão interna corporis. Do contrário, bastaria ao Congresso colocar no Regimento Interno que uma Emenda Constitucional pode ser alterada por voto de maioria simples, e isso se tornaria insindicável. O Congresso não tem o poder de transformar uma questão constitucional em questão interna apenas copiando o dispositivo no Regimento Interno, afirmando então que tem liberdade para interpretá-lo.
Logo, tendo em vista que existe norma constitucional expressa aplicável ao caso, o que impede o uso de analogia ou a invocação da insindicabilidade de questões interna corporis, é absolutamente vedada a reeleição consecutiva para o mesmo cargo de quaisquer das Mesas do Congresso dentro da mesma legislatura.
Aliás, a Consultoria do Senado emitiu brilhante parecer no mesmo sentido do que expusemos acima.
Uma observação final: será assim que o STF agirá? Não me arrisco a palpitar. A razão é simples. Creio que hoje o STF, em larga medida, não se apoia em razões jurídicas, mas na conveniência política dos grupos que indicaram os atuais ministros. A jurisprudência do STF, a meu ver, a pelo mais severo processo de deterioração de sua história, sendo as decisões fundadas, em grande medida, no voluntarismo dos julgadores. Logo, creio que descrevi o direito, mas dependendo de “interpretações” do STF, acredito que ninguém seja capaz de prever o futuro.