O artigo 20-C da norma diz que ao interpretar a lei, “o juiz deve considerar como discriminatório qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.

Na avaliação de Antônio Pedro Machado, mestre em Direito Constitucional, a legislação não se restringiu à equiparação da injúria racial ao racismo, e a retirada de piadas do repertório de humoristas será uma das consequências dessa ampliação da lei. “Piadas envolvendo pessoas pertencentes a uma etnia, muito comuns em um contexto de show de stand-up comedy, por exemplo, podem ar a ser consideradas um crime mais grave”, explica Machado.

“O grande problema é a extensão da interpretação, que pode ser dada para qualquer tipo de conduta. A lei também não especifica quais são esses grupos minoritários, e essas generalizações são muito preocupantes. Não há precisão e, por outro lado, há uma amplitude, o que permite interpretar os fatos dentro de um contexto que não existe”, afirma um jurista consultado pela reportagem que é negro e concedeu entrevista sob a condição de anonimato por receio de represálias de ativistas. “Há, sim, o risco de se condenar por racismo pessoas que não são racistas e é justamente para evitar isso que havia o crime de injúria racial sem equiparação ao racismo”, prossegue.

Machado, por outro lado, destaca que a vagueza da expressão “grupos minoritários” deve ser motivo de debates junto aos tribunais e possivelmente ficará a cargo de jurisprudência do STF.

Vale destacar que as novas regras que criminalizam piadas com determinados grupos trazem penas maiores do que para crimes como furto, receptação de bens roubados e sequestro. Além disso, o fator da imprescritibilidade (isto é, os crimes não prescrevem com o tempo) aplicado a essas condutas não é empregado nem mesmo para homicídio e estupro no país.

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Sermões religiosos também entram na mira

Em outro trecho, a norma expressa que se a prática do suposto racismo ocorrer no contexto de atividades religiosas destinadas ao público, o autor será proibido de frequentar locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais por três anos, além da pena de prisão, que pode chegar a cinco anos.

Na avaliação das fontes ouvidas pela reportagem, a medida pode criminalizar declarações de líderes religiosos cristãos que falem, em seus sermões, contra práticas oriundas de religiões afro. “No limite, pode haver esse tipo de interpretação e vir a proibir um pastor, por exemplo, que diga qualquer coisa nesse sentido”, explica Machado.

“Se um padre ou pastor fizer algum comentário [que envolva práticas de religiões afro] numa homilia, palestra ou pregação corre o risco de ser enquadrado nessa legislação. Isso vai colocar principalmente os evangélicos em uma situação complicada. Vai haver uma limitação cada vez maior à liberdade de manifestação de opinião”, complementa o jurista que falou sob anonimato.

Senador petista propôs ampliação do rol de práticas consideradas racistas

O texto que originou a lei é de autoria da deputada federal Tia Eron (Republicanos-BA) e foi aprovado na Câmara dos Deputados em novembro de 2021. A proposta da deputada era tipificar o crime de injúria racial como racismo quando cometido em locais públicos.

Em maio de 2022, quatro dias após a forte repercussão pública do caso do jogador Edenilson, na época atleta do Internacional, que alegou ter sido vítima de injúria racial em jogo contra o Corinthians, o Senado também aprovou o projeto de lei. Lá, entretanto, o senador Paulo Paim (PT-RS), relator do projeto, propôs ampliar o alcance da medida e equiparar a injúria racial ao racismo em outros casos. Por causa dessa alteração, o texto teve que ar novamente pela Câmara, sendo aprovado em dezembro de 2022.

A redação final aprovada pelo Congresso Nacional teve contribuição vinda de um anteprojeto redigido pela Comissão de Juristas de Combate ao Racismo, instituída pela Câmara dos Deputados. O atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania no governo Lula, Silvio Almeida, e a secretária-executiva, Rita Oliveira, fizeram parte dessa comissão.

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