
A senhora ouve muitos relatos desse tipo?
Maria da Penha: Sim. Eu não sou professora, mas eu sei que existe isso. Como também na própria casa das pessoas, se a mãe não é atenta a essa evolução da sociedade, quantas e quantas vezes elas dizem que os meninos podem brincar e “você vem ajudar a sua mãe aqui na cozinha, a lavar louça, arrumar as camas”, isso aí é muito colocado nas rodas de conversa [do Instituto Maria da Penha, em Fortaleza (CE)].
Maria da Penha: Não. O papel do instituto é investir em educação, através de parcerias com as universidades, para a formação de líderes comunitárias, que depois interagem com as mulheres agredidas, informando como proceder para fazer a denúncia e se libertar do agressor. E também faz projetos estatísticos.
A gente se preocupa com as vítimas invisíveis da violência doméstica, que são os órfãos. Já sabemos que para cada mulher assassinada, em média, ficam três crianças na orfandade.
A gente se preocupa porque o homem matou uma mulher, a mãe desse homem vai levar esse neto para o Conselho Tutelar para prender [o agressor], que é filho dela? Não vai. É mais comum os filhos ficarem com o pai ou com a avó paterna. E o que acontece nessa convivência? Já pensou se o menino é danado? [A criança ouve:] "Por isso que o teu pai matou tua mãe, você puxou tua mãe". Ela justifica que a mãe devia morrer, porque era muito "briguenta", que o "pai matou porque ela merecia", assim como "bate porque ela merece".
Nunca existiu preocupação de governos com essas vítimas invisíveis e continua sem existir. Quando começamos essa pesquisa, em 2016, foi a primeira vez que foi dada visibilidade para a existência dessas crianças.
Maria da Penha: Eu sou uma pessoa feliz. Eu consegui mudar alguma coisa para as mulheres do país. Existe um aumento muito grande de denúncias e isso está relacionado ao entendimento de que a mulher não está tendo mais vergonha para denunciar.
--------
Maria da Penha Maia Fernandes é uma farmacêutica e bioquímica de Fortaleza, Ceará. Ela conheceu o homem com quem viria a casar e ter três filhas, um economista colombiano, quando fazia mestrado na Universidade de São Paulo (USP). Ele era aluno da pós-graduação em Economia.
Enquanto esteve casada, dos 31 aos 38 anos de idade, foi vítima de agressões em casa. Ela e as três filhas do casal, todas na primeira infância. Maria da Penha não tinha coragem para denunciar. Até que levou um tiro de espingarda pelas costas enquanto dormia e ficou paraplégica. O marido alegou que o tiro que a mulher sofreu foi resultado de um assalto à residência.
Ao voltar do hospital numa cadeira de rodas, o marido tentou eletrocutá-la enquanto ela tomava banho. Maria da Penha, então, procurou a polícia, mas enfrentou quase 20 anos de leniência do Judiciário. O marido foi condenado duas vezes e não era preso.
Em 1994, aos 49 anos, a farmacêutica gritou por socorro de novo ao relatar sua história no livro "Sobrevivi... posso contar". Duas entidades - o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CEJIL), ofereceram ajuda e denunciaram o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela forma negligente com que tratava os casos de violência doméstica e se viu obrigado a mudar as leis do país.
O ex-marido, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, acabou preso, mas não chegou a ficar dois anos na cadeia.
A Lei Maria da Penha foi aprovada em 07 de agosto de 2006 e leva o nome da farmacêutica e bioquímica como reparação simbólica pelos quase 20 anos de omissão do Estado brasileiro em punir o agressor.
Hoje, ela está com 74 anos e preside o Instituto Maria da Penha.