O decreto cria um Cadastro Base do Cidadão, que reúne, dentro do governo, informações sobre cada brasileiro a partir de seu F, que pode agregar dados biográficos – nome, data de nascimento, filiação, naturalidade, nacionalidade, sexo, estado civil, grupo familiar, endereço e vínculos empregatícios – e também dados biométricos – palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar.

O objetivo de reunir essas informações é simplificar a oferta de serviços públicos e otimizar a execução de políticas públicas, especialmente na concessão de benefícios sociais e fiscais.

As autorizações para o compartilhamento interno desses dados, inclusive os sigilosos, cabe a um novo órgão, chamado Comitê Central de Governança de Dados, composto basicamente por representantes de diversas pastas do governo – Ministério da Economia, Controladoria-Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU), Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e Casa Civil da Presidência da República. O comando cabe à Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, que compõe a Economia.

O decreto descreve os procedimentos e requisitos de segurança que devem ser observados no compartilhamento dos dados – a obtenção de dados sigilosos, por exemplo, deve ser justificada de forma detalhada e seguir a legislação, sobretudo a LGPD.

Mas para a OAB há risco à privacidade, à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, e também à “autodeterminação informativa”, isto é, à autonomia das pessoas para decidir como suas informações são usadas pelo governo.

“As regras adotadas para o compartilhamento de dados pelos órgãos governamentais permitem interligar bases e cruzar dados pessoais sem critérios que sejam conhecidos dos cidadãos: sem informações claras, adequadas e transparentes sobre a realização da coleta e do tratamento, bem como, sobre quem são e como agem os agentes do tratamento”, diz a ação.

A entidade vai além e chega a dizer que o decreto cria uma “ferramenta de vigilância estatal extremamente poderosa”. “O Decreto nº 10.046/2019 cria um poderoso instrumento estatal para elaboração de profilings, confecção de dossiês de espionagem contra opositores políticos e atividades de vigilância totalitária”, diz a OAB.

A entidade aponta outros pontos de contrariedade com a LGPD, especialmente porque o Comitê Central de Governança de Dados, composto apenas por representantes do próprio governo, não se submeteria à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão superior com representantes de vários setores que supervisiona a aplicação da lei de proteção de dados pessoais.

Em defesa do decreto, a Presidência da República manifestou-se no STF pela sua manutenção. Argumentou, basicamente, que o decreto regulamenta a LGPD em relação ao tratamento de dados pessoais por parte do governo e segue diretrizes de segurança e sigilo das informações. Destacou que a finalidade é pública, isto é, melhorar a prestação de serviços públicos.

“Quando um dado custodiado pela istração for enquadrado no nível de categoria mais rígida por ele prevista (categoria específica) tal dado necessita de autorização específica a partir de um pedido devidamente justificado para poder ser compartilhado, ainda que dentro da própria istração. Desse modo, nota-se que não há qualquer autorização à divulgação ou ao compartilhamento de dados sem critérios”, argumentou a Presidência em parecer.

Disse ainda que ao Cadastro Base do Cidadão não é uma nova base de dados, mas uma “plataforma destinada à visualização integrada e ao aumento da confiabilidade entre os cadastros de dados já existentes e a disposição de órgãos da istração pública de forma descentralizada”.

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PGR defende manutenção do decreto

Chamada a opinar dentro da ação, a Procuradoria-Geral da República enviou parecer a favor da manutenção do decreto. Mas defendeu que o STF reforce a determinação, já contida na norma, de que, quando um órgão do governo pede dados a outro órgão, essa solicitação seja formalizada e bem fundamentada.

Deverá conter data; identificação, telefone e endereço eletrônico institucional do solicitante; além de descrição clara dos dados, das finalidades de uso, que devem se ater a propósito relacionado à execução de política pública.

Tal providência [...] viabilizaria o registro detalhado das operações de compartilhamento e, com isso, possibilitaria dar aos titulares dos dados ciência sobre a coleta e sobre a realização do tratamento dos dados, conferindo maior transparência aos procedimentos”, diz a PGR.

A ação contra o Cadastro Base do Cidadão será julgada em conjunto com outra, apresentada pelo PSB, que busca proibir um plano que existia, dentro do governo, com base no mesmo decreto, de permitir à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) coletar dados de todas as carteiras de habilitação do país, o que incluiria nome, filiação, endereço, telefone, histórico de propriedade de veículo e foto.

Na ação, a AGU informou ao STF que o termo de autorização, que permitiria esse compartilhamento, foi revogado, e que nenhum dado do Denatran foi reado à Abin. As duas ações têm como relator o ministro Gilmar Mendes.