“Por se tratar de pessoa pública, a envolver fatos de elevada repercussão, o encerramento das investigações e consequente formulação de ação penal, como é evidente, já dariam azo à natural e ampla divulgação, em caráter nacional, dos fatos narrados na denúncia, dos elementos de prova existentes e, a partir de então, dos trâmites processuais subsequentes”, escreveu o juiz.

Na sentença, o magistrado ainda citou o jurista Antonio Jeová Santos, para quem agentes públicos merecem uma proteção à honra “mais branda”, por estarem “sujeitos a um controle rígido da sociedade”, especialmente quando decidem entrar na vida política.

“A aceitação de uma função pública traz em si uma tácita submissão à crítica das demais pessoas. O sujeito se coloca em uma vitrina sujeita à inspeção e controle pelos interessados na istração dos assuntos da sociedade. A função pública oferece um flanco inevitável à supervisão e a possíveis ataques a seus afazeres. Trata-se de assumir o risco, sendo previsível a crítica, inclusive aquela que pareça injusta”, citou o juiz.

Carlo Melfi ainda rejeitou a acusação de que seriam ofensivas algumas expressões usadas por Deltan Dallagnol contra Lula, como "maestro" ou "comandante" do esquema de corrupção na Petrobras, por exemplo. Para isso, reproduziu trechos da própria condenação mostrando que o ex-presidente foi beneficiado com R$ 2,2 milhões, na forma da reserva e reforma do tríplex. O dinheiro seria oriundo do caixa geral de propinas da OAS, abastecido com recursos desviados da Petrobras e destinado a pagar vantagens indevidas para o PT.

Além de rejeitar a condenação de Deltan, o juiz ainda impôs a Lula o dever de pagar R$ 100 mil (10% do valor da causa) de honorários à defesa do ex-procurador, feita pela AGU (o valor só não foi pago porque o processo ainda não se encerrou, com o recurso pendente no STJ).

À época da sentença, Lula já havia sido condenado pelo juiz Sergio Moro a 9 anos e 6 meses de prisão no caso – a condenação ocorreu em julho de 2017, poucos meses antes da decisão que absolveu Deltan. E, alguns meses depois, a segunda instância da Lava Jato, o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), confirmou a condenação proferida por Moro.

Em 2018, Lula recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) contra a decisão que julgou improcedente a ação contra o Powerpoint de Deltan. Em setembro daquele ano, a 8.ª Câmara de Direito Privado manteve a decisão da primeira instância. “A divulgação em caráter nacional decorreu da notoriedade do autor e da grande repercussão dos fatos. Inexistência de abuso nas expressões utilizadas na referida divulgação (maestro, comandante) que, aliás, inserem-se no próprio contexto da denúncia perpetrada que acabou sendo recebida e ensejou a prolação de sentença condenatória”, dizia o acórdão da decisão.

O recurso ao STJ foi apresentado ainda em 2018, mas rejeitado pelo próprio TJ-SP, a quem cabe a primeira análise sobre sua viabilidade. Em setembro de 2019 porém, o ministro do STJ Luís Felipe Salomão itiu a tramitação do recurso no tribunal superior, “em face das circunstâncias que envolvem a controvérsia e para melhor exame do objeto do recurso”.

O jogo virou a favor de Lula?

Na época das sentenças de primeiro e segundo grau contrárias a Lula no caso do Powepoint de Deltan, a defesa já apontava o que considerava ser supostas irregularidades no processo – especialmente a condução coercitiva e a interceptação telefônica, em março de 2016 – que, cinco anos depois, em 2021, levariam o Supremo Tribunal Federal (STF) a declarar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro e anular a condenação do ex-presidente e as principais provas colhidas na investigação.

Hoje, com Lula totalmente livre dos processos, e num momento em que adversários da Lava Jato conseguiram praticamente esvaziar a operação, observadores do caso consideram que, sobretudo em Brasília, o jogo pode virar contra Deltan Dallagnol no caso do Powerpoint. “O momento político do julgamento da primeira instância e do TJ era um, e hoje é outro”, diz um advogado que acompanha de perto o processo, e que pediu para falar sob a condição de sigilo.

Desde 2019, a Lava Jato tem sofrido sucessivas derrotas: a anulação de diversas condenações e investigações pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o vazamento de conversas privadas dos antigos procuradores da extinta força-tarefa e punições disciplinares contra o próprio Deltan Dallagnol (ao ponto de isolá-lo e de ele deixar o Ministério Público Federal) e contra outros procuradores. Tudo isso criou um clima amplamente desfavorável em Brasília à Lava Jato – e a entrada dele e de Moro na política só agravou o descrédito da operação entre os ministros do STJ e do STF.

O julgamento do recurso de Lula contra Deltan ainda não tem data marcada. A decisão caberá aos ministros da Quarta Turma do STJ, formada por Luís Felipe Salomão, Raul Araújo, Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi. Os três primeiros foram nomeados para o STJ pelo próprio Lula e os dois últimos pela ex-presidente Dilma Rousseff.

Será possível a eles, na decisão, impor uma derrota a Deltan Dallagnol em diferentes graus. Na hipótese mais grave, poderiam analisar o mérito das acusações de Lula e mandar o ex-procurador indenizá-lo em até R$ 1 milhão, como pleiteou a defesa.

Há, porém, uma opção mais leve: determinar que o processo volte à primeira ou à segunda instância para uma nova decisão do juiz de São Bernardo ou do TJ-SP. Essa hipótese ganha força se os ministros entenderem que há vícios processuais – o STJ e o STF já decidiram que ações cíveis contra agentes públicos federais devem ser ajuizadas contra a União em casos que envolvem a atuação funcional deles.

Lula optou por processar Deltan diretamente, o que foi itido inicialmente, mas é algo que ainda pode ser revertido pelo STJ. Há jurisprudência que permite à União, em caso de condenação, cobrar o valor devido do próprio agente público responsável pelo ato lesivo. Esse seria, na visão de advogados do próprio ex-procurador, o caminho adequado para o trâmite da ação.

Nessa hipótese, apesar de não haver uma condenação imediata, Deltan ainda sofreria desgaste, porque continuaria respondendo ao processo, com risco maior de condenação – especialmente se o STJ determinar também que haja uma análise mais abrangente, nas primeiras instâncias, sobre as circunstâncias e motivações da coletiva de imprensa do Powerpoint de Deltan.

Em sua defesa no processo, o ex-coordenador da Lava Jato apontou outras questões preliminares que prejudicariam a ação: o fato de ter sido apresentada à Justiça estadual e não à federal; e de ter sido ajuizada em São Bernardo e não em Curitiba, local da coletiva de imprensa de 2016. Sobre as acusações em si, defendeu-se dizendo que, em razão de a denúncia envolver um ex-presidente da República, “foi compelido a conferir publicidade” ao caso, “de forma a se afastar qualquer cogitação de ilegalidade ou abuso”.

Deltan acrescentou que a corregedoria do MPF não apontou qualquer conduta antiética na apresentação, que agiu “no estrito cumprimento de um dever legal” e que seu objetivo foi narrar com isenção os fatos descobertos na investigação e expostos na denúncia. “A expressão ‘comandante’ utilizada junto à imprensa se fez para indicação do ex-presidente como peça central de esquema de corrupção envolvendo a Petrobras”, afirmou.

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