Já o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que por quatro anos e meio ficou à frente do julgamento das denúncias da Lava Jato, divulgou nota, no domingo (9), mostrando preocupação “sobre supostas mensagens” e afirmando que “quanto ao conteúdo das mensagens que me citam, não se vislumbra qualquer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado, apesar de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias”.
Nesta segunda-feira (10), Moro foi mais enfático. Embora diga que, nas mensagens divulgadas não veja “direcionamento”, o ministro disse também que nem pode “dizer que são autênticas porque, veja, são coisas que aconteceram. Se aconteceram, foram há anos atrás. Não tenho mais essas mensagens. Eu não guardo, não tenho registro disso”, disse em Manaus (AM).
Para além da defesa de suas atuações profissionais e do legado do combate à corrupção, as notas divulgadas pelos procuradores da Lava Jato e por Sergio Moro podem ter consequências judiciais, se as provas forem lícitas. Quando era o juiz à frente da operação, Moro divulgou a conversa entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a então presidente Dilma Rousseff (PT), mesmo com o prazo da interceptação vencido em razão de sua própria ordem judicial.
O caso foi parar no STF, quando se argumentou desvio de função contra a indicação de Lula à Casa Civil. Naquela ocasião, o ministro Gilmar Mendes, relator sorteado, a conceder o pedido liminar que impediu Lula de assumir o ministério, escreveu o seguinte:
“A validade da interceptação é publicamente contestada, por ter sido realizada após ordem judicial para a suspensão dos procedimentos. De fato, houve decisão determinando a interrupção das interceptações em 16.3.2016, às 11h13. A ordem não foi imediatamente cumprida, o que levou ao desvio e gravação do áudio mencionado. No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato. Em pelo menos duas oportunidades, a Presidente da República itiu a conversa, fazendo referências ao seu conteúdo”.
Um dos pontos levantados por todas as manifestações até o momento diz respeito à autenticidade – mesmo que o Intercept mostre o material por inteiro – e a licitude das conversas divulgadas, ao que tudo indica, por meio de hack.
A Constituição Federal veda o uso de provas ilícitas ou obtidas ilicitamente, e dificilmente uma investigação regular conseguiria ter o aos mesmos dados obtidos ilegalmente. Eventuais consequências jurídicas para Moro e os procuradores seriam improváveis – a não ser que se entenda que, com as notas divulgadas, eles confessaram o conteúdo, o que, no jargão jurídico, se chama “esquentar a prova”.
Por isso, todo o cuidado com a linguagem utilizada nas notas. “A [nota] do [Sergio] Moro chama [as conversas] de ‘supostas’. A do MPF diz que houve uso de conversas descontextualizadas ou alteradas. Acho que nem eles saberiam dizer se usaram exatamente aquelas palavras”, disse reservadamente à reportagem um procurador do MPF.
Se a autenticidade do conteúdo nunca for comprovada por meios lícitos, os procuradores e Sergio Moro não devem sofrer maiores consequências jurídicas, mas isso não significa que não possa haver consequências para a Lava Jato.
Como regra geral, provas ilícitas não podem ser utilizadas em processos. A Constituição Federal é clara quando diz, em seu artigo 5º, inciso LVI, que “são inissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Já o Código de Processo Penal, em seu artigo 157, afirma que “[s]ão inissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.
No entanto, quando se trata do campo do direito penal, em favor da absolvição dos réus, essa regra é flexibilizada. A parte à discussão a prova a favor do réu produzida por meio ilícito é realmente ilícita, embora itida, ou lícita, porque produzida em legítima defesa, há inúmeros casos na jurisprudência brasileira em que provas produzidas com violação à intimidade de alguém foram itidas em processos.
Um dos primeiros casos em que o STF itiu essa hipótese, após a Constituição de 1988, foi no Inquérito 657, de relatoria do ministro Carlos Veloso. Sobre uma gravação clandestina feita por uma das partes, o ministro entendeu que “[a] alegação no sentido de que a prova é ilícita não tem procedência, dado que não ocorreu, no caso, violação do sigilo das comunicações – C.F., art. 5º, XII – nem seria possível a afirmativa de que fora ela obtida por meios ilícitos (C.F., art. 5º, LVI). Não há, ao que penso, ilicitude em alguém gravar uma conversa que mantém com outrem, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa. A alegação talvez pudesse encontrar ressonância no campo ético, não no âmbito do direito”.
Já no Habeas Corpus 75.338, julgado em 1998, o relator, ministro Nelson Jobim, argumentou “[é] lícita a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com sequestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista”.
Não está clara, no entanto, a extensão dessa flexibilização. O raciocínio que embase a issão das provas ilícitas em favor do réu é o da proporcionalidade: quando se coloca na balança o direito à liberdade, à presunção da inocência e ao devido processo legal do réu e, de outro lado, o direito à intimidade da parte que teve uma conversa gravada, prevalece os direitos do réu.
Mas, no caso de um hackeamento ilegal de anos de conteúdo de um smartphone, a violação à privacidade e à intimidade são bem maiores – e não está claro, para alguns procuradores, para qual lado a balança deveria pender nessa hipótese.
Seja como for, réus e condenados da Lava Jato só poderão ser beneficiados se de fato se interpretar as conversas entre Dallagnol e Moro como hipótese de suspeição do então magistrado.
O Código de Processo Penal diz, em seu artigo 254, que “[o] juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles [...] IV - se tiver aconselhado qualquer das partes” e, em seu artigo 564, que “[a] nulidade ocorrerá nos seguintes casos: I - por incompetência, suspeição ou suborno do juiz [...]”.
Por isso, quem saiu em defesa do juiz Sergio Moro e dos procuradores disse não ver qualquer irregularidade nas condutas. A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), por exemplo, além de atacar o vazamento, afirma que “as matérias jornalísticas produzidas devem oportunizar a prévia ouvida dos envolvidos e ter a cautela de não reproduzir frases descontextualizadas, soltas, desconexas, que possam confundir, ao invés de esclarecer”.
O MP Pró-Sociedade, associação que reúne procuradores conservadores, foi mais longe, ao afirmar que o vazamento “indica conversas relacionadas às relações de trabalho, resultantes dos vínculos de confiança estabelecidos entre agentes comprometidos com o respeito à Constituição e às leis do país. Nestes diálogos, repita-se, obtidos por meio de crimes graves, não há conluios, não há corrupção, não há falsidades, não há qualquer intento de salvar criminosos, dilapidadores dos recursos do povo”.
Já para o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), que reúne advogados e criminalistas garantistas, “o direito de o cidadão ser julgado por um juízo competente, independente e imparcial está cristalizado não apenas na legislação brasileira e em nossa Constituição Federal, mas integra Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu artigo 8º, inciso 1”, diz em nota.
O IBCCrim, que entende que as notas de Sergio Moro e da Lava Jato confirmam a veracidade das conversas, argumenta ainda que “a atuação do magistrado fez tábula rasa do dever de fundamentação das decisões, contaminando o processo de convencimento regular de qualquer juiz equidistante, em desempenho leal de suas funções; tratou o dever e a garantia de imparcialidade como um jogo ilusionista que comoveu a opinião pública e granjeou tanta simpatia”.
“Por isso e diante dos fatos trazidos à tona neste final de semana, o Instituto manifesta seu repúdio às ilegalidades da Operação Lava Jato e aos efeitos nefastos que a operação trouxe às instituições democráticas brasileiras”, encerra a nota.
O corregedor nacional do Ministério Público Federal, Orlando Rochadel Moreira, decidiu abrir uma investigação para averiguar a conduta de membros da força-tarefa da Lava Jato, incluindo o procurador Deltan Dallagnol. A apuração foi pedida por quatro conselheiros do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que identificaram relevância nas supostas conversas.
Os conselheiros Luiz Fernando Bandeira de Mello, indicado pelo Senado, Gustavo Rocha, indicado pela Câmara dos Deputados, Erick Venâncio e Leonardo Accioly, indicados pela OAB, afirmam que “cabe apurar se houve eventual falta funcional, particularmente no tocante à violação dos princípios do juiz e do promotor natural, da equidistância das partes e da vedação de atuação político-partidária”, embora frisem que “não se forma nenhum juízo prévio de valor”.
Já o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por deliberação unânime, também seguiu o caminho da prudência na avaliação do material: “a íntegra dos documentos deve ser analisada para que, somente após o devido processo legal – com todo o plexo de direitos fundamentais que lhe é inerente –, seja formado juízo definitivo de valor”, diz em nota divulgada.
A OAB, contudo, pediu o afastamento dos envolvidos de cargos públicos, para garantir a imparcialidade das investigações, e afirmou que “não se furtará em tomar todas as medidas cabíveis para o regular esclarecimento dos fatos, especialmente junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), Procuradoria-Geral da República (PGR), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”.