
Depois disso, os novos funcionários receberam um treinamento de 90 dias que incluiu não só a parte prática de direção mas também língua portuguesa, cultura brasileira, gestão financeira e legislação de trânsito. Outra medida tomada pela empresa para facilitar o processo de integração foi a de fornecer aulas de espanhol para colaboradores brasileiros que teriam maior interface com os venezuelanos. As famílias dos imigrantes chegaram à cidade após 90 dias, com orientação profissional e informações sobre o sistema educacional brasileiro, em uma parceria com o Instituto Sendas, de Maringá.
Em Curitiba, uma das empresas que ofereceu vagas aos venezuelanos foi o Shopping Mueller – são sete funcionários estrangeiros em diferentes áreas do shopping, como atendimento e setor istrativo. No início, o shopping teve dúvidas sobre a barreira da língua. “Mas foi uma grata surpresa. São pessoas que vieram ao Brasil com uma disposição incrível de recomeçar, de fazer parte. Os lojistas aderiram e a diversidade foi bem interessante, ocorreu uma troca ótima com os funcionários brasileiros”, destaca a superintendente do Mueller, Daniela Baruch. O shopping também firmou uma parceria com o Sesi Paraná para que os estrangeiros possam aprender português e revalidar seus diplomas – muitas pessoas com ensino superior trabalham atualmente em vagas operacionais.
Auxiliar de auditoria no Shopping Mueller, Carlos Ramos, 27 anos, chegou ao Brasil em maio de 2018. Morou em Boa Vista e Rorainópolis antes de chegar a Curitiba em junho do ano ado. Decidiu, por conta própria, tentar a sorte na capital paranaense após assistir a vídeos sobre a cidade no YouTube. “Via que era uma cidade legal para morar, juntei dinheiro e vim. As pessoas aqui ajudam muito e as oportunidades para crescer e viver são muito boas, mas é preciso trabalhar e estudar para tudo sair bem”, diz ele, que costuma ear pelo Jardim Botânico em suas folgas do trabalho. “É o melhor lugar aqui de Curitiba”. Com o trabalho fixo, conseguiu trazer da Venezuela a irmã, Yolicar, que trabalha em uma loja de brinquedos no centro da cidade. Os pais continuam na Venezuela. “Eles não querem vir para cá por causa da idade e por medo de perder a casa”. Carlos não tem planos de voltar ao país natal. “Se as coisas melhorarem por lá, vai demorar uns 10 anos. E nesse tempo eu posso fazer a minha vida aqui no Brasil, formar minha família, conseguir outras coisas. Voltar seria começar do zero”.
Foi sua origem imigrante – de uma família de libaneses fugida da guerra civil – que impulsionou o empresário Rachid Cury, proprietário da rede de restaurantes Kharina, a abrir oportunidades de emprego para imigrantes e refugiados. Desde a vinda de haitianos ao Brasil, a partir de 2010, Cury iniciou as contratações. “Fizemos alguns testes e gostamos do resultado. É para eles terem uma primeira oportunidade de se estabelecer no Brasil”. Hoje, a rede conta com funcionários do Haiti, Venezuela, Chile e Paraguai.
Cury nunca precisou lidar com situações de xenofobia por parte de clientes ou funcionários brasileiros. Segundo ele, o freguês enxerga a diversidade como positiva no negócio. “Em Curitiba as pessoas são muito receptivas, meus funcionários trabalham de uma forma leve e tranquila e nunca teve nenhuma conversa sobre tirar a oportunidade de outro, não tem isso. Os clientes, quando percebem que o funcionário é de fora, falam mais devagar, repetem o pedido. No geral o público lida bem, tem uma empatia muito grande”. A miscelânea de idiomas também ajuda a todos: Cury conta que um de seus funcionários vindos do Haiti era professor de inglês e estava ensinando a língua a outros colegas da cozinha no dia a dia. “E aí você percebe o pessoal começando a aprender algumas palavras em uma segunda língua, é muito bacana. Nosso papel é acolher”.
Fantine del Rosario Soto Portella, 22, é uma das funcionárias venezuelanas na Rede Kharina e chegou ao Brasil há três anos, diretamente em Curitiba. Uma tia, que vive nos Estados Unidos, bancou a agem de avião para que a moça viesse à cidade encontrar a mãe, que já vive na capital há 10 anos. Fantine morava em Caracas com o pai, Jose Gregório Soto, jornalista e publicitário, que tinha uma agência de comunicação. “Eu era o braço direito dele. A gente fazia trabalhos grandes, para a Disney, McDonald’s. Nosso último trabalho foi em 2015, para o filme Velozes e Furiosos. Depois disso, a empresa faliu por causa da crise”. A jovem, que estudava Engenharia Ambiental na Universidade Marítima do Caribe, relata que não havia mais condições de ficar na Venezuela. “Eu me mantinha com o pouco dinheiro que a minha mãe mandava para mim e meus irmãos. Tudo ficou muito caro. Com um salário mínimo no Brasil você consegue pagar um aluguel. Lá, só consegue comprar um frango”.
A atendente, que considera os brasileiros acolhedores e curiosos em saber de onde ela é e como chegou ao Brasil, não sabia português, mas aprendeu no cotidiano com colegas e outros amigos brasileiros. Sua palavra preferida no idioma é saudade. “Eu acho muito bonita, em espanhol não existe”. Fantine pretende voltar a estudar (quer cursar engenharia na UFPR) e trazer o pai ao Brasil em 2020 – os irmãos já vieram. “É a minha grande meta para esse ano. O máximo que fiquei longe dele foram quatro dias”, fala a moça, que mantém a comunicação com o pai via WhatsApp, e fica aflita quando não consegue contato por causa da queda do sinal de internet ou de energia, comuns na Venezuela. Com a empresa falida, o pai de Fantine sobrevive com a ajuda de familiares. Recentemente ela enviou R$ 50 para que o pai comprasse comida (o suficiente para pouquíssimos dias).
A tenente Stephane salienta a importância da inclusão de mais mulheres imigrantes no mercado de trabalho. São elas, junto com os filhos, as mais vulneráveis, e que permanecem pelo maior tempo nos abrigos da Operação Acolhida em Boa Vista. Hoje, o projeto tem uma parceria com a ONU Mulheres para a inserção das trabalhadoras, tanto na sensibilização das empresas como na qualificação profissional: por meio de parceria com o Senac, cursos de promotora de vendas, hotelaria e língua portuguesa são ofertados para as mulheres abrigadas. “Ver essas pessoas reestruturarem suas vidas, e não de uma forma paliativa, mas com estrutura e emprego, é muito gratificante”, ressalta a tenente.