Essas quadrilhas não migraram nem conciliam outras ações criminosas, mas para Smith, essa é uma questão de tempo. “Quando se está no crime organizado, para partir para outra atividade ilícita é muito rápido. Diversifica os ganhos a partir de um caminho que já está trilhado”, denuncia.
A fronteira entre o Brasil e a Argentina está dividida entre trechos com agem seca em uma pequena faixa de terra de 25 quilômetros e quatro rios: o Uruguai, o Peperi-Guassú, o Santo Antônio e o Iguaçu. Um dos pontos mais críticos para o contrabando de vinhos está entre os municípios de Dionísio Cerqueira (SC) e Barracão (PR) lado a lado, separados apenas por uma linha imaginária no meio da rua. Do outro lado da fronteira, a poucos metros de distância, está a cidade argentina de Bernardo De Irigoyen.
Ali, na chamada agem seca entre os dois países, há uma aduana, mas os contrabandistas usam rotas alternativas. Mais adiante, outra aduana está no município de Santo Antônio do Sudoeste (PR) que faz fronteira com a argentina San Antonio. É neste posto que a PF acaba de aumentar o efetivo para, entre outras prioridades, reprimir o contrabando de vinhos. Dali, outro ponto transfronteiriço de destaque fica em Foz do Iguaçu com a cidade argentina de Porto Iguaçu, onde há mais fiscalização. A rotina aduaneira intensa acaba inibindo a ação mais ousada dos criminosos.
O vinho adquirido em supermercados, restaurantes, revendas ou e-commerce pode ser de origem ilícita. Segundo o delegado da PF Marco Smith, esses segmentos aparecem como principais receptadores. “E o receptador pode, entre outras penalidades, responder criminalmente”, explica o delegado, que considera o contrabando de vinhos um mercado bilionário.
Se do lado de cá tem compradores, do lado de lá os fornecedores, no meio do caminho estão os atravessadores. Pessoas geralmente em vulnerabilidade econômica ou social, desempregadas e cooptadas pelas organizações para fazer o transporte entre fronteiras. Recebem valores irrisórios, quase se assemelhando ao trabalho análogo à escravidão, avalia o auditor fiscal da Receita Federal em Dionísio Cerqueira (SC) Tsuyoshi Ueda.
Legalmente, cada pessoa pode atravessar com até 12 litros de vinho, em média 16 garrafas de 750 ml, sem ultraar a cota de US$ 500. Por isso, a travessia é feita em um trabalho de formiguinha. É gente indo e vindo de diversas formas: de carro, de moto, a pé.
No Brasil, grandes estruturas foram montadas como depósito para o contrabando de vinhos. O esquema de transporte em território nacional tem se tornado mais ousado e vem sendo feito com caminhões, em grandes carregamentos.
Outro ponto que tem alertado as forças de segurança é que vinhos de outras nacionalidades, como França, Itália e Estados Unidos também são encontrados com esses grupos. “Não sabemos ainda se esse vinho foi para a Argentina e de lá entrou no Brasil ou se veio de outros países direto para o Brasil”, conta o auditor fiscal da Receita Federal.
Na última semana, a Receita Federal, a Polícia Federal e a Polícia Militar de Santa Catarina cumpriram 16 mandados de busca e apreensão contra uma quadrilha que, somente numa ação em 2019, teve mais de 2,3 mil caixas de vinhos apreendidas.
O grupo tem despachado o produto no meio de cargas lícitas de móveis, feno e até de papel higiênico. Durante esta operação, a polícia também apreendeu armas de fogo. “Alguns dos vinhos encontrados tem valor no mercado superior a R$ 2 mil, e vinham de outros países além da Argentina”, esclareceu em nota a Receita Federal.
Em outra operação, no ano de 2021, a Receita apreendeu 22 mil garrafas de vinho, estimadas em R$ 4 milhões, nessa mesma região de fronteira.
Não precisa pesquisar muito para comparar preços e ver que algo pode não estar certo. Um vinho tinto seco Malbec que aparece como um dos mais vendidos na Argentina custa, em média, R$ 37 no país vizinho. Em consulta a plataformas de e-commerce no Brasil é possível encontrar o produto por pouco mais de R$ 30 (sem emissão de nota fiscal), podendo chegar a R$ 88, quando está devidamente legalizado. “Quem consegue vender ainda mais barato nas plataformas no Brasil é porque compra de revendedores em grandes quantidades, barateando o preço. Isso torna o mercado completamente desleal com quem faz todo o processo correto”, completa o delegado Marco Smith.
Tanto produto apreendido não costuma ficar estocado nos depósitos da Receita Federal por muito tempo. Assim que é apreendido, o produto fica disponível ao proprietário por um um prazo legal, caso queira reivindicar e comprovar a origem lícita. Quando isso não ocorre, o produto toma outros destinos. Durante a pandemia de Covid-19, a principal delas foi a entrega para laboratórios que produzem álcool em gel.
Outra alternativa considera questões sanitárias e identifica se o produto pode ser próprio para o consumo. No caso de reprovação, segue para destruição. Leilões legalizados podem ser outro destino final dos vinhos apreendidos.
As apreensões de bebidas alcóolicas realizadas pela Receita Federal no Brasil, nos últimos seis anos, têm revelado uma crescente e preocupante escalada do mercado ilegal. Foram quase R$ 240 milhões em produtos tirados de circulação no período.
Em 2017 haviam sido R$ 11,6 milhões em produtos alcóolicos apreendidos, valor que saltou para R$ 16,7 milhões em 2018 e chegou ao patamar dos R$ 34,6 milhões em 2019. Em 2020, subiu para quase R$ 39 milhões e, em 2021, explodiu para R$ 71,1 milhões. Apesar de uma leve retração, no ano ado foram R$ 66,4 milhões em apreensões. Somente no estado do Paraná, as apreensões no período somaram R$ 57 milhões: 24% do total apreendido em todo o Brasil.