No entanto, assim como outros direitos e liberdades garantidos no artigo 5.º, a liberdade religiosa não é um direito absoluto, e pode haver ocasiões em que ela precise sofrer restrições por entrar em conflito com outras garantias constitucionais – como é o caso atual, em que se invoca também o direito à saúde e o dever constitucional de garanti-la. Mesmo assim, a relevância dada pelo constituinte à liberdade religiosa significa que qualquer limitação ao seu exercício exige uma reflexão muito cuidadosa e precisa sobre os limites da interferência estatal. A liberdade religiosa é um direito do qual não se pode abrir mão com facilidade, e qualquer autoridade que a banalize – por exemplo, demonizando as cerimônias religiosas como “covidários” e colocando-as entre as primeiras a sofrer restrições quando os números de casos e mortes por Covid-19 estão subindo – está muito longe de entender o real sentido dessa liberdade na Constituição brasileira e da laicidade do Estado.
Se por um lado seria completamente absurdo que o poder público proibisse a própria realização das cerimônias religiosas, ainda que sem a presença dos fiéis – esta, sim, seria uma violação frontal do artigo 19 da Constituição –, por outro é evidente que se possa aplicar às atividades religiosas regras iguais às impostas a outras atividades, como limitação de presença e imposição de demais medidas de prevenção – nem mesmo Nunes Marques pretendeu algo diferente. A pergunta é: o Estado pode ir além disso? Haveria situações em que o poder público pudesse proibir completamente a participação presencial dos fiéis, mesmo que em número reduzido, nas cerimônias religiosas?
Assim como as escolas, os templos religiosos deveriam estar entre os últimos locais a fechar completamente, e entre os primeiros a reabrir quando a situação epidemiológica melhorasse
Nunes Marques respondeu a essa pergunta com um “não”; é aqui que nos distanciamos um pouco do raciocínio do ministro e daqueles que, de boa fé e sabedores do valor da religião para a sociedade, consideram que tal vedação seria “embaraçar o funcionamento” das igrejas, desrespeitando o inciso I do artigo 19 da Constituição. Como já afirmamos, a liberdade religiosa não é um direito absoluto; situações graves poderiam, sim, justificar esse tipo de medida. Por isso, é bastante questionável a forma como prefeitos e governadores no Brasil têm aplicado as restrições mais severas, pois muitos deles proibiram a participação dos fiéis em cultos religiosos sem critérios claramente definidos, ou enquanto permitem a continuidade de várias outras atividades. Assim como as escolas, embora por motivos diversos, os templos religiosos deveriam estar entre os últimos locais a fechar completamente, e entre os primeiros a reabrir quando a situação epidemiológica melhorasse.
Os membros do Supremo farão bem se levarem em conta todos esses aspectos peculiares à atividade religiosa e a defenderem com firmeza, ainda que não excluam completamente o direito de governadores e prefeitos a impor restrições mais duras à participação de fiéis nos cultos religiosos, desde que apenas em casos graves e com critérios muito bem definidos. Se der a sinalização correta, o Supremo coibirá abusos das autoridades estaduais e municipais e as incentivará a estabelecerem exatamente aquela colaboração de que fala o artigo 19, trabalhando em conjunto com os líderes religiosos, promovendo ações de prevenção de forma que se possa limitar ao mínimo possível o direito dos brasileiros de participar presencialmente de atos que lhes são tão caros.